segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Caminhada



Quero dizer algumas palavras em nome da Natureza, da liberdade absoluta e do estado selvagem, por contraste com a liberdade e a cultura meramente civilizadas, com o intuito de ver no homem um habitante, uma parte ou uma parcela da Natureza, e não um mero membro da sociedade. Pretendo fazer declarações muito duras, senão mesmo categóricas, pois há já muitos paladinos da civilização: os padres, as congregações escolares e todos vós se encarregarão dessa tarefa.
Encontrei na vida somente uma ou duas pessoas que entendiam a arte de caminhar, ou seja, a arte de dar caminhadas, e que tinham um talento especial para vaguear. Na nossa língua, o termo saunterer, sinónimo de «caminhante», tem uma raiz admirável: remete para «as pessoas livres que vagueavam pelo país, na Idade Média, e que pediam esmolas para ir à la Sainte Terre», à Terra Santa. Não tardou que as crianças exclamassem: «Lá vai um sainte-terrer!», um vagabundo sem eira nem beira, rumo à Terra Santa, Aqueles que nas suas caminhadas nunca alcançam a Terra Santa, embora firmem o contrário, não passam de meros vagabundos e de gente ociosa; mas os que lá vão são saunterers no bom sentido do termo, tal como o entendo. Alguns, contudo, atribuem a origem da palavra à expressão francesa sans terre, sem terra nem lar, que, portanto, em boa verdade, quer dizer gente sem casa a que chamar sua, mas que se sente em casa em todo o lado. Pois é este o segredo da errância bem-sucedida. Um homem que não sai de casa todo o dia pode ser o mais errante de todos, e um sem-terra pode não ser mais errante do que o sinuoso rio que procura persistentemente o caminho mais curto para o mar. Mas eu prefiro a primeira suposição, que me parece a origem mais provável do termo. Pois todas as caminhadas se assemelham a cruzadas pregadas por um tal Pedro, o Eremita, que há em nós, para que partamos e regatemos esta Santa Terra das mãos dos Infiéis.
É verdade que hoje em dia somos apenas fracos cruzados, e que a esta fraqueza nem os passeantes escapam, pois não se comprometem com proezas intermináveis e que exigem perseverança. As nossas expedições não passam de breves viagens que terminam ao fim da tarde junto à lareira que nos viu partir. Metade da caminhada não passa de um refazer do percurso. Até na caminhada mais curta devíamos partir talvez movidos pelo espírito da eterna aventura, sem retorno á vista, preparados para enviar para os nossos reinos desolados somente os nossos corações embalsamados, quais relíquias. Se estais dispostos a abandonar pais e mães, irmãos e irmãs, mulheres, filhos e amigos, e a não tornar a vê-los; se haveis saldado as vossas dívidas, feito o vosso testamento e resolvido todos os vossos assuntos, e se sois homens livres, estais então preparados para uma caminhada.

Henry David Thoreau, Caminhada

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