sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Conversão de São Paulo (2)



Caravaggio, «São Paulo«

Conversão de São Paulo

1E Saulo, respirando ainda ameaças e mortes contra os discípulos do Senhor, dirigiu-se ao sumo sacerdote. 2E pediu-lhe cartas para Damasco, para as sinagogas, a fim de que, se encontrasse alguns neste Caminho, quer homens quer mulheres, os conduzisse presos a Jerusalém. 3E, indo no caminho, aconteceu que, chegando perto de Damasco, subitamente o cercou um resplendor de luz do céu. 4E, caindo em terra, ouviu uma voz que lhe dizia: Saulo, Saulo, por que me persegues? 5E ele disse: Quem és, Senhor? E disse o Senhor: Eu sou Jesus, a quem tu persegues. Duro é para ti recalcitrar contra os aguilhões. 6E ele, tremendo e atônito, disse: Senhor, que queres que eu faça? E disse-lhe o Senhor: Levanta-te, e entra na cidade, e lá te será dito o que te convém fazer. 7E os homens, que iam com ele, pararam espantados, ouvindo a voz, mas não vendo ninguém. 8E Saulo levantou-se da terra, e, abrindo os olhos, não via a ninguém. E, guiando-o pela mão, o conduziram a Damasco. 9E esteve três dias sem ver, e não comeu nem bebeu. 10E havia em Damasco um certo discípulo chamado Ananias; e disse-lhe o Senhor em visão: Ananias! E ele respondeu: Eis-me aqui, Senhor. 11E disse-lhe o Senhor: Levanta-te, e vai à rua chamada Direita, e pergunta em casa de Judas por um homem de Tarso chamado Saulo; pois eis que ele está orando; 12E numa visão ele viu que entrava um homem chamado Ananias, e punha sobre ele a mão, para que tornasse a ver. 13E respondeu Ananias: Senhor, a muitos ouvi acerca deste homem, quantos males tem feito aos teus santos em Jerusalém; 14E aqui tem poder dos principais dos sacerdotes para prender a todos os que invocam o teu nome. 15Disse-lhe, porém, o Senhor: Vai, porque este é para mim um vaso escolhido, para levar o meu nome diante dos gentios, e dos reis e dos filhos de Israel. 16E eu lhe mostrarei quanto deve padecer pelo meu nome. 17E Ananias foi, e entrou na casa e, impondo-lhe as mãos, disse: Irmão Saulo, o Senhor Jesus, que te apareceu no caminho por onde vinhas, me enviou, para que tornes a ver e sejas cheio do Espírito Santo. 18E logo lhe caíram dos olhos como que umas escamas, e recuperou a vista; e, levantando-se, foi batizado. 19E, tendo comido, ficou confortado. E esteve Saulo alguns dias com os discípulos que estavam em Damasco. 20E logo nas sinagogas pregava a Cristo, que este é o Filho de Deus. 21E todos os que o ouviam estavam atônitos, e diziam: Não é este o que em Jerusalém perseguia os que invocavam este nome, e para isso veio aqui, para os levar presos aos principais dos sacerdotes? 22Saulo, porém, se esforçava muito mais, e confundia os judeus que habitavam em Damasco, provando que aquele era o Cristo. 23E, tendo passado muitos dias, os judeus tomaram conselho entre si para o matar. 24Mas as suas ciladas vieram ao conhecimento de Saulo; e como eles guardavam as portas, tanto de dia como de noite, para poderem tirar-lhe a vida, 25Tomando-o de noite os discípulos o desceram, dentro de um cesto, pelo muro. 26E, quando Saulo chegou a Jerusalém, procurava ajuntar-se aos discípulos, mas todos o temiam, não crendo que fosse discípulo. 27Então Barnabé, tomando-o consigo, o trouxe aos apóstolos, e lhes contou como no caminho ele vira ao Senhor e lhe falara, e como em Damasco falara ousadamente no nome de Jesus. 28E andava com eles em Jerusalém, entrando e saindo, 29E falava ousadamente no nome do Senhor Jesus. Falava e disputava também contra os gregos, mas eles procuravam matá-lo. 30Sabendo-o, porém, os irmãos, o acompanharam até Cesaréia, e o enviaram a Tarso. 31Assim, pois, as igrejas em toda a Judéia, e Galiléia e Samaria tinham paz, e eram edificadas; e se multiplicavam, andando no temor do Senhor e consolação do Espírito Santo. 32E aconteceu que, passando Pedro por toda a parte, veio também aos santos que habitavam em Lida. 33E achou ali certo homem, chamado Enéias, jazendo numa cama havia oito anos, o qual era paralítico. 34E disse-lhe Pedro: Enéias, Jesus Cristo te dá saúde; levanta-te e faze a tua cama. E logo se levantou. 35E viram-no todos os que habitavam em Lida e Sarona, os quais se converteram ao Senhor. 36E havia em Jope uma discípula chamada Tabita, que traduzido se diz Dorcas. Esta estava cheia de boas obras e esmolas que fazia. 37E aconteceu naqueles dias que, enfermando ela, morreu; e, tendo-a lavado, a depositaram num quarto alto. 38E, como Lida era perto de Jope, ouvindo os discípulos que Pedro estava ali, lhe mandaram dois homens, rogando-lhe que não se demorasse em vir ter com eles. 39E, levantando-se Pedro, foi com eles; e quando chegou o levaram ao quarto alto, e todas as viúvas o rodearam, chorando e mostrando as túnicas e roupas que Dorcas fizera quando estava com elas. 40Mas Pedro, fazendo sair a todos, pôs-se de joelhos e orou: e, voltando-se para o corpo, disse: Tabita, levanta-te. E ela abriu os olhos, e, vendo a Pedro, assentou-se. 41E ele, dando-lhe a mão, a levantou e, chamando os santos e as viúvas, apresentou-lha viva. 42E foi isto notório por toda a Jope, e muitos creram no Senhor. 43E ficou muitos dias em Jope, com um certo Simão curtidor.


Actos dos Apóstolos, 9

Conversão



Hans Speckaert, «Conversão de São Paulo na Estrada de Damasco»

Madalenas

Havia já muitos anos que, de Combray, não existia para mim tudo o que não fosse o teatro e o drama do meu deitar, quando, num dia de Inverno, ao regressar a casa, a minha mãe, vendo-me com frio, me propôs que, contra o meu hábito, tomasse um chá. Comecei por recusar e, não sei porquê, mudei de opinião. Ela mandou buscar um daqueles bolos pequenos e roliços chamados «madalenas», que parecem ter sido moldados na concha estriada de uma vieira. E não tardou que, maquinalmente, abatido pelo dia taciturno e pela perspectiva de um triste dia seguinte, levei à boca uma colher de chá onde deixara amolecer um pedaço de madalena. Mas no preciso instante em que o gole com migalhas d ebolo misturadas me tocou no céu da boca, estremeci, atento ao que de extraordinário estava a passar-se em mim. Fora invadido por um prazer delicioso, um prazer isolado, sem a noção da sua causa. Tornara-me imediatamente indiferentes as vicissitudes da vida, inofensivos os seus desastres, ilusória a sua brevidade, do mesmo modo que o amor opera, enchendo-me de uma essência preciosa: ou, antes, tal essência não estava em mim, era eu mesmo. Deixara de me sentir medíocre, contingente, mortal. Donde poderia ter vindo aquela poderosa alegria? Sentia-a ligada ao gosto do chá e do bolo, mas ultrapassava-o infinitamente, não devia ser da mesma natureza. Donde vinha? Que significava? Onde agarrá-la? Bebo um segundo gole, no qual nada encontro a mais que no primeiro, e um terceiro que me traz um pouco menos que o segundo. É tempo de parar, a virtude da bebida parece estar a diminuir. É evidente que a verdade que procuro não está nela, mas em mim. Ela despertou-a, mas não a conhece, e não pode mais do que repetir indefinidamente, cada vez com menos força, aquele mesmo testemunho que não sei interpretar e que, pelo menos, quero poder tornar a pedir-lhe e reencontrar intacto, à minha disposição, daqui a pouco, para um decisivo esclarecimento. Poiso a xícara e volto-me para o meu espírito. A ele cabe encontrar a verdade. Mas como? Grave incerteza, sempre que o espírito se sente ultrapassado por si mesmo; quando ele, o explorador, é todo ele o país escuro que tem a explorar e onde lhe não servirá de nada toda a sua bagagem. Explorar? Não só: criar. Está diante de algo que não é ainda e que só ele pode tornar real e depois fazer entrar na sua luz.
E recomeço a perguntar a mim mesmo qual poderia ser esse estado desconhecido, que não trazia consigo qualquer prova lógica, mas sim a evidência da sua felicidade, da sua realidade, diante da qual as outras se esfumavam. Pretendo tentar fazê-lo reaparecer. Retrocedo pelo pensamento ao momento em que tomei a primeira colher de chá. Reencontro o mesmo estado, sem uma clareza nova. Peço ao meu espírito mais um esforço,, que me traga mais uma vez a sensação que se escapa. E para que nada quebre o impulso com que vai tentar reagarrá-la, afasto todos os obstáculos, todas as ideias alheias, protejo os meus ouvidos e a minha atenção contra os ruídos do quarto contíguo. Mas, sentindo que o meu espírito se fatiga sem o conseguir, forço-o, pelo contrário, a tomas essa distracção que eu lhe recusava, a pensar noutra coisa, a restabelecer-se antes de uma suprema tentativa. Depois, pela segunda vez, faço o vazio à frente dele, torno a pôr diante dele o sabor ainda recente daquele primeiro gole, e sinto estremecer em mim qualquer coisa que se desloca, que queria erguer-se, qualquer que terão desancorado, a uma grande profundidade; não sei que é, mas sobe lentamente; sinto a resistência e oiço o rumor das distâncias atravessadas.

Não há dúvidas de que o que assim palpita no fundo de mim deve ser a imagem, a recordação visual, que, ligada a este sabor, tenta segui-lo até mim. Mas debate-se muito longe, muito confusamente; mal posso discernir o reflexo neutro onde se confunde o inapreensível turbilhão das cores agitadas; mas não posso distinguir a forma, pedir-lhe, como único intérprete possível, que me traduza o testemunho do seu contemporâneo, do seu inseparável companheiro, o sabor, pedir-lhe que me diga de que especial circunstância, de que época do passado se trata. 

Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido, Do Lado de Swann

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Apresentações - 1º Período

Carolina Antunes: Auto da Alma, de Gil Vicente (1.11.13)
Carolina Esteves: Amor de Perdição, de Camilo Castelo-Branco (1.11.13)
Francisco: Agamémnon, de Ésquilo (1.11.13)
Artur: A Confiança em Si, de Ralph Waldo Emerson (1.11.13)
Lourenço: De Profundis, de Oscar Wilde (4.11.13)
Sandra: Auto da Feira, de Gil Vicente (4.11.13)
Rafaela: Hamlet, de William Shakespeare (4.11.13)
Mafalda: Viagens na Minha Terra, de Almeida Garrett (4.11.13)
Manuel: Morte em Veneza, de Thomas Mann (8.11.13)
Rita: Eléctra, de Sófocles (8.11.13)
Tiago: As Minas de Salomão, de Rider Haggard (8.11.13)
Nuno: A Queda de Um Anjo, de camilo Castelo-Branco (8.11.13)
Henrique: Moby Dick, Herman Melvile (11.11.13)
Inês: Menina e Moça, de Bernardim Ribeiro (11.11.13)
Diogo Baptista: Emigrantes, de Ferreira de Castro (11.11.13)
Diogo Jesus: Rei Édipo, de Sófocles (11.11.13)
Duarte: Otelo, o Mouro de Veneza, de William Shakespeare (15.11.13)
Inês Coutinho: Medeia, de Eurípides (15.11.13)
João Espinha: Eurico, o Presbítero, de Alexandre Herculano (15.11.13)
Pedro Fernandes: A Relíquia, de Eça de Queirós (15.11.13)
Gonçalo: Caminhada, Henry Thoreau (18.11.13)
Pedro Couto: Prometeu Acorrentado, de Ésquilo (18.11.13)


quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Imagens que passais pela retina

Imagens que passais pela retina 
Dos meus olhos, porque não vos fixais?
Que passais como a água cristalina
Por uma fonte para nunca mais!...

Ou para o lago escuro onde termina
Vosso curso, silente de juncais,
E o vago medo angustioso domina,
- Porque ides sem mim, não me levais?

Sem vós o que são os meus olhos abertos?
- O espelho inútil, meus olhos pagãos!
Aridez de sucessivos desertos...

Fica sequer, sombra das minhas mãos,
Flexão casual de meus dedos incertos,
- Estranha sombra em movimentos vãos.

Camilo Pessanha, Clepsidra

11

Acabou o Sol & o sino da tarde leva
Os deuses, um a um, a um passado provisório,
Donde irão emergir para o grande cisma
Do Inverno, o primeiro sopro do qual
Já se ouve subir os píncaros da serra.
Para a deusa branca chegou o fim do seu enigma,
A sua ruína coroa agora as ruínas do castelo:
Aqui morrem os deuses & as borboletas.
Rejeitados olhamos apenas,
Recíproco, um brilho no vazio.


M.S. Lourenço, Nada Brahma

Portugal Futuro

O portugal futuro é um país
aonde o puro pássaro é possível
e sobre o leito negro do asfalto da estrada
as profundas crianças desenharão a giz
esse peixe da infância que vem na enxurrada
e me parece que se chama sável
Mas desenhem elas o que desenharem
é essa a forma do meu país
e chamem elas o que lhe chamarem
portugal será e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este
ter a oeste o mar e a espanha a leste
tudo nele será novo desde os ramos à raiz
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o portugal futuro

Ruy Belo, Homem de Palavra[s]

O sol é grande, caem co'a calma as aves

O sol é grande, caem co'a calma as aves
Do tempo em tal sazão que soe ser fria.
Esta água que d'alto cai acordar-me-ia?
Do sono não, mas de cuidados graves.

Ó cousas todas vãs, todas mudaves!
Qual é tal coração qu'em vós confia?
Passam os tempos, vai dia trás dia,
Incertos muito mais que ao vento as naves.

Eu vira já aqui sombras, vira flores,
Vi tantas águas, vi tanta verdura,
As aves todas cantavam d'amores.

Tudo é seco e mudo, e de mestura,
Também mudando-m'eu fiz d'outras cores,
E tudo mais renova: isto é sem cura.


Francisco de Sá de Miranda

domingo, 13 de outubro de 2013

Maria João Seixas entrevista Maria Filomena Molder

Maria João Seixas entrevista Maria Filomena Molder (Professora Universitária)
Parece-se com um pássaro. Dos pequeninos, da família dos pardais, frágeis nas tentativas, sempre bem-sucedidas, de contrariarem o equilíbrio instável dos corpos assentes em patinhas muito finas para pousarem, contra ventos e outras ameaças, exactamente onde desejam. Quando fala, quase nos engana. Faz umas pausas de arranque que nos levam a supor que as palavras se vão começar a enrolar para depois serem substituídas por outras mais certeiras. Mas quando a ouvimos logo percebemos que tudo se deve ao recuo da voz perante o pensamento e que a hesitação que testemunhámos é apenas o tempo de uma sincronia muito própria, já que as frases surgem límpidas, vestidas por uma musicalidade singular, por uma espécie rara de cristais. Viaja, a nosso lado, por tempos antigos e por outros mais modernos, como se as leituras que faz fossem os bordões apropriados, e sempre à mão, para desenhar o iluminado rumo do trajecto. A bagagem, habitada maioritariamente por filósofos, poetas e artistas plásticos, parece pesada, mas a Maria Filomena, quando a desmancha, transforma as recordações e os saberes em flocos de nuvens, delicados, leves. Fica-nos a ideia de que, sem mesmo se dar conta, tudo o que diz foi soprado por uma brisa vinda de um longe polvilhado de enredos, tramas de seduzir até os mais desatentos. Custou-me acabar a conversa, tantos foram os baús por abrir! Como se tivéssemos sentido, ambas, o pudor de avançar mais, o pudor de contar o «resto», seja a quem for!

MJS – Maria Filomena, diga-me quem é.
MFM- Acho que só gostaria de dizer uma coisa, que sou arisca.
MJS – Não me dá grandes pistas, assim… Fico a saber que não lhe é nada fácil abrir-se aos outros!
MFM – Sim, sim. Nunca tive confidentes, não seria capaz.
MJS – Nem teve um diário?
MFM – Em miúda, como quase todas as raparigas, escrevia para um caderno. Sem qualquer disciplina. Mais tarde, continuei a escrever mas, embora com data, não era bem um diário, eram mais registos de impressões, apreciações de coisas que se estavam a passar, algumas pequenas inquietações ou grande, conforme…
MJS – Quando diz «mais tarde», é já na idade adulta?
MFM – Adulta, mas ainda perto da adolescência. Teria vinte e poucos anos.

MJS – Acha que cresceu tarde?
MFM – Se cresci tarde? Não, não acho que tenha crescido tarde. Quando era muito nova, achava que morrer depois dos vinte anos era uma infâmia. Portanto, está a ver, não se isto quer dizer que se cresceu muito, se pouco. Depois, quando passei os vinte, não sei se dei logo por isso, que tinha passado os vinte, acho que dei… mas devo ter-me esquecido e agora olho para essa minha ideia com alguma atenção, com um pouco de susto e, até, uma certa incompreensão. Na altura achava que podermos viver muito era uma espécie de infidelidade a certas coisas que se passam connosco, era um abuso.
MJS – Havia em si uma relação com o sagrado’
MFM – Isso havia. Tive uma educação religiosa muito estrita, mas houve também a perda da crença e o sentido do religioso manteve-se na expectativa de que haja, talvez, uma ligação parental entre as coisas, mesmo que a não saibamos dizer ou justificar, mas isso era acompanhado por um cepticismo assustador. Tenho a consciência de que essa ideia tinha mais a ver com um olhar muito crítico, quase inclemente, sobre a adaptação.
MJS – Daí o ser arisca…
MFM – Pois!
MJS – Insisto – essa autocaracterização não quererá também dizer que a surpresa da vida lhe traz grande incomodidade?
MFM – Acho que não. É um sentimento, que vem da infância, de não poder ser «apanhada». Não é bem resistir à surpresa da vida, é mais não querer ser agarrada, como um animal que foge.

MJS – E agora vou eu fugir para o terreno onde muito me interessa ouvi-la – o da filosofia. Soube cedo que queria estudar Filosofia?
MFM – Soube cedo, apesar de não saber bem o que era exactamente filosofia. Sabia que não queria estudar ciências, apesar de as ciências me atraírem e de nem sequer ter sido má aluna. Há nas ciências coisas que me interessam muito, mas sabia que não podia investigar a ciência, porque a ciência tem que pôr entre parênteses a linguagem que nós falamos e isso é uma condição que não consigo cumprir de nenhuma maneira.

MJS – Explique-me melhor esse conflito entre a ciência e a linguagem que falamos.
MFM – A língua materna fica entre parênteses. A ciência tende a constituir-se numa linguagem própria e, quando não consegue, tende a encontrar uma linguagem comum, qualquer que ela seja. Uma linguagem formularia, ou internacional, ou mesmo inventada, onde se pode escavar pouco. Pode até ser muito elaborada, mas não se pode escavar, não há metáforas em matemática, não há as minas que a linguagem transporta consigo, os palácios da memória, porque os objectos correspondem aos símbolos inventados. Essa limpidez arquitectónica (parece divina) é o sonho de qualquer outra ciência, o de chegar a ser matemática. Na altura, eu não tinha consciência disto que acabei de lhe dizer, mas era isso já o que me inquietava, e a filosofia, ou o que me levava até à filosofia, era eu não saber o que era. Não sabendo ainda o que era a filosofia, é estranho não me ter desviado, não ter arrepiado caminho, por exemplo, para a literatura, de que tanto gostava. Não podemos nunca estar certos de poder explicar a alguém, com alguma tranquilidade, o que é a filosofia, isso continua a ser um desafio fascinante. Tem tudo a ver com uma relação, que eu via na filosofia, com o segredo, com o mistério, com o enigma (ainda que o enigma também apareça na ciência, mas o mistério, falando-se embora nele, na ciência não aparece tanto). Há qualquer coisa deste género na ciência: há uma «coisa» que eu não sei, mas hei-de chegar a saber! E, na filosofia, dir-se-ia assim: há uma «coisa» que eu não sei e vou estar sempre nesta situação! Não é que essa «coisa» se desloque, como na ciência, nós é que nos deslocamos e a «coisa» desloca-se ao mesmo tempo. Para mim, esse é o grande mistério, o da expectativa que não pode ser preenchida de modo nenhum. Do meu ponto de vista, que sou céptica. É um paradoxo, não é? Ter uma expectativa e, ao mesmo tempo, ter uma certeza que não tem nenhum fundamento a não ser este saber de que, por exemplo, nunca poderei satisfazer a sede de justiça, ou nunca poderei satisfazer a angústia da morte. Estas e outras questões não constituem nenhuma prova para o cepticismo, mas são boas pedras-de-toque para lá se chegar.

MJS – De algum modo, por aquilo que me disse, acho que a Maria Filomena encontrou na Filosofia a disciplina par da sua natureza, já que se trata de um território também ele muito arisco. Conte-me agora como é que foi a aprendizagem.
MFM – Fiz o curso na Faculdade de Letras de Lisboa. Foi quase sempre uma grande desilusão, do ponto de vista do que me era ensinado. Era como se estivesse num liceu, embora melhor, mais vasto. Não foi uma passagem descontínua para um plano onde podia encontrar aquilo que procurava, mas talvez fosse ingenuidade minha, uma esperança vã, a de querer encontrar numa instituição de ensino aquilo de que andava anteriormente à procura. Não podemos ter essa ilusão. Alguns professores ajudaram-me a aproximar-me um pouco mais do que procurava, é verdade, como é o caso do professor Oswaldo Market. Não que as disciplinas que ele ensinava tivessem a ver com o mistério, mas tinham seguramente a ver com o enigma. Ensinou-me uma experiência fundamental, a de perceber que antes de mim já outros tinham vivido as questões que se me punham. O que dá uma certa tranquilidade e, ao mesmo tempo, é causa de um grande sofrimento. O professor Market deu-me a saber que havia uma coisa, muito bem iluminada por ele, que é uma pertença comum e que eu podia ter acesso a essa pertença. Ele tinha uma arte de converter o objecto do seu estudo e das suas aulas no termo de um inquérito que, às vezes, parecia uma história policial: havia um enigma para resolver e tinha de se encontrar um fio e nós percebíamos que havia toda a lógica no fio e na sua procura. Esse mesmo modelo era por ele seguido nas conferências, sempre apaixonantes.

MJS – Como é que foi o seu encontro com os gregos?
MFM – É engraçado que o meu encontro com os gregos deu-se, não nas aulas de Filosofia Antiga, mas, estranhamente, nalgumas das primeiras aulas de Filosofia Medieval. Quando o padre Cerqueira perguntou quais eram os nossos autores favoritos, respondi – Heraclito. Mas foi só mais tarde, pela mão de Giorgio Colli, que percebi bem a utilidade dos ensinamentos do pensador de Éfeso e o fundamento da minha grande admiração. O que, na altura da resposta ao padre Cerqueira, eu admirava em Heraclito era já a sua obscuridade. Colli, para além de ter traduzido todos os fragmentos de Heraclito, de fontes directas, indirectas, testemunhos de toda a ordem, escreveu textos fundantes sobre o seu pensamento. Foi ele o primeiro a ensinar-me (o que eu nunca tinha aprendido na Faculdade!) o verdadeiro sentido daquela que era uma das razões do fascínio pela obscuridade de Heraclito. Antes de ler Colli, essa razão era uma razão falsa.

MJS – Uma razão falsa?
MFM – Vou tentar explicar. Lembra-se do fragmento de Heraclito em que ele fala sobre a harmonia dos contrários, como a que existe entre o arco e a lira? Na altura não percebi onde é que estava a contradição entre o arco e a lira. E não houve explicação por parte do professor de Filosofia Antiga. Creio que não sabia, como eu também não sabia, o que é que queria dizer o arco e a lira. Imaginei, muito ignorantemente, que a lira se tocaria, naqueles tempos, com um arco. Ora a lira toca-se, sempre se tocou, evidentemente, com as mãos. E sabe qual é a contradição? A lira e o arco são dois símbolos de Apolo. O arco é o arco da guerra. Os gregos achavam que era Apolo que tinha introduzido o arco, que é uma arma asiática, não é uma arma grega, e é uma arma assustadora, porque é a primeira que mata ao longe. Aquele que quer matar já não fere directamente com as suas mãos, mata de longe. A lira também é um símbolo apolíneo. Apolo tem essa particularidade de ser o deus musical por excelência e ser também o mais cruel dos deuses que os gregos conheceram. A crueldade de Apolo é indissociável da expressão harmónica que ele é. Trata-se de um modo de ver a vida. Mais interessante ainda é saber que, em épocas muito arcaicas, a lira e o arco eram feitos a partir da mesma matéria, os cornos de um caprino que, conforme a inclinação, se transformavam num arco ou numa lira. Heraclito sabia isto, mas não o dizia, porque ele não dizia quase nada do que sabia. Quem compreendia, compreendia. É esse o aspecto da obscuridade heraclitiana, não a marca do absurdo, mas a tonalidade de uma experiência que só pode ser reconhecida por quem a conhece. Um seu contemporâneo, grego, se fosse culto, deveria saber como é que o arco e a lira eram feitos nos tempos antigos.

MJS – Heraclito continua a ser, dos filósofos pré-socráticos, o seu eleito?
MFM – Continua, embora, ainda por causa de Colli e também de Hoelderlin, esteja muito empenhada em conhecer melhor Empédocles. Mas Heraclito continua a ser um foco natural de atracção, porque não há ninguém que conhecemos em filosofia a quem a marca da obscuridade e do insondável calhe melhor. Colli qualifica-o, entre todos os filósofos que apresenta, como aquele que sofreu o «pathos» do obscuro. Esse «pathos» do obscuro é uma experiência de Heraclito, experiência que também tem a ver com uma espécie de inclemência para com os seus contemporâneos, de desprezo e de grande sentido crítico em relação à maioria. Mas, ao mesmo tempo, ele sabe que qualquer ser humano tem acesso ao que mais importa, a fonte da vida, os limites da alma. Foi ele quem melhor compreendeu, ou melhor, nos deu a compreender, o modo como os gregos viam a infância. Trata-se de um outro fragmento, em que nos fala da criança que joga aos dados, é esta a apresentação da vida para o filósofo – a realeza da criança! A realeza da criança é a leveza, a suspensão, a harmonia que existe nela antes do trabalho da educação. Trabalho sempre exercido no sentido da adaptação ao real.

MJS – Passemos agora à idade moderna. O seu encantamento por Nietzsche também cresceu por via de Giorgio Colli?
MFM – Sim. Conhecia Colli como editor de Nietzsche, mas nunca o tinha lido. Fui um dia assistir, na Assírio e Alvim, a uma conferência sobre Maria Zambrano. Jesús Moreno, o conferencista, falou de Nietzsche e das leituras que ela dele fizera, muito importantes para o seu pensamento e falou também de Giorgio Colli, ainda mais determinante para a obra de Maria Zambrano. Fui logo ler Dopo Nietzsche e não parei mais de ler tudo o que escreveu, que é uma obra rara, em todos os sentidos. É uma obra de alguém que está muito perto dos primeiros filósofos, em particular dos pré-socráticos, e ainda mais em particular de Heraclito. Não encontramos em Colli nenhuma nota de rodapé (a não ser na sua primeira obra, A Natureza Gosta de Esconder-se, e por razões argumentativas, no quadro da sua carreira académica) e é raro que ele cite o texto que está a referir do autor, porque ele não escreve para divulgar, nem para ser divulgado. Colli crê que a filosofia é uma actividade contemplativa (isso eu já sabia, mas foi bom ver confirmado!) e crê também que a escrita dessa actividade contemplativa deve ter sempre o último lugar.

MJS – O último lugar? Como é que dá as suas aulas?
MFM – É curioso, ao princípio escrevia as aulas. Mas não gostava nada de ler o que tinha escrito ou do esforço que fazia para decorar. Agora não as escrevo. Também não escrevo as conferências. Deve-se isto a uma disciplina muito grande, que se chama concentração.
MJS – Nas conferências percebo melhor, agora nas aulas… como é que reage ás interrupções, imprevisíveis, dos alunos? Desviam-na do fio condutor?
MFM – Pode-se perder o fio à meada, é verdade, mas é raro isso acontecer-me. As perguntas feitas pelos alunos implicam outra entrega, outra concentração. Depois regressa-se ao fio. No fim do ano, consigo reconstituir todas as aulas que dei, esqueço-me às vezes é das datas e, para fazer os sumários, chego a pedir os apontamentos dos alunos para saber exactamente em que dia dei isto ou aquilo.

MJS – O esforço terrível de escrever uma tese de doutoramento já lá vai… Qual foi o tema?
MFM – Foi Goethe e os seus textos sobre as plantas, as cores, os animais, a meteorologia… E ainda alguns textos teóricos sobre isso, ou seja, os textos sobre as plantas e os textos que ele escreveu sobre o que escreveu sobre as plantas, isto é, sobre a Natureza, sobre as formas e sobre o modelo que a Natureza é para o surgimento das formas artísticas.
MJS - Porquê Goethe?
MFM – Ah, isso também tem um pai, neste caso, Claude Lévi-Strauss, de quem sempre gostei muito. Quando era professora de liceu, já dava a ler aos meus alunos La Pensée Sauvage, sobretudo por causa daquele conceito da lógica primitiva e também da ideia da arte ser sempre miniatural. No Homem Nu há um finale, uma espécie de testamento onde Lévi-     -Strauss no fundo justifica as suas teses e o estudo da antropologia e do estruturalismo. Aí, além de falar de Bach e de Ravel, fala de três autores e de três obras que foram muito importantes para ele: Duerer e os seus textos sobre as proporções dos corpos e dos rostos; On Growth and Form, de um grande matemático e biólogo inglês, D’Arcy Thompson; A Metamorfose das Plantas, de Goethe. Fui ler as três e decidi fazer a tese sobre A Metamorfose.          
MJS – Quer contar-me A Metamorfose das Plantas e a razão do seu interesse?
MFM – O título, devo dizer-lhe, parece prometer mais do que a obra. Acho que onde existe a palavra «metamorfose» há sempre, pelo menos para mim, a expectativa de qualquer coisa de enigmático, e neste livro de Goethe não há isso, não existem apresentações ou soluções de enigmas. A obra é uma tentativa de compreender o crescimento das plantas. Não de todas as plantas, mas das plantas que crescem e florescem anualmente. É um grupo reduzido de plantas, mas são plantas maravilhosas que florescem todos os anos. Como a tulipa, por exemplo. Hei-de mostrar-lhe umas polaróides de umas tulipas especiais, tulipas goethianas por excelência. São aquelas em que a corola, a folha da corola, aquilo a que chamamos uma pétala, está a crescer numa folha caulinar, isto é, uma folha caulinar está quase a transformar-se numa corola. E Goethe desenhou-a! E ensina-nos, como de resto os botânicos também o fazem, que o crescimento de uma planta é como se fosse uma reprodução e a reprodução é como se fosse um crescimento. São duas versões, uma contraída, outra expandida. Essas são as duas forças de que ele fala – expansão e contracção. E é muito interessante ver como ele analisou, através dessas duas forças, o crescimento das plantas, desde as folhas do embrião até ao fruto. Cada momento do crescimento é uma metamorfose da folha, em todo o ponto do crescimento a planta é uma folha! Sempre que ele encontrava casos «anómalos», como por exemplo o caso das plantas que têm florescimentos prolíferos, ficava feliz, porque esses casos comprovavam melhor a acção das duas forças. Goethe sabia que a Natureza não errava, com esses casos a Natureza estava apenas a mostrar melhor o princípio da lei.
MJS – O tema parece-me, desculpe que lhe diga, um pouco extravagante no contexto de uma tese de Filosofia. Onde é que está a ponte?
MFM – A ponte situa-se exactamente no que está implicado nessa compreensão das plantas, ou no modo como ele via as pedras, ou no estudo dos ossos, que até o levou a descobrir, contrariando a tese da época, que havia no homem o osso intermaxilar… A constante observação e a minúcia aplicada a todas as coisas que há na terra são reveladores do seu grande amor pela terra. Conhece a história do crânio de Schiller? Schiller, dez anos mais novo que Goethe, sempre o quis conhecer. Mas Goethe não estava interessado em conhecer Schiller, porque este representava tudo aquilo que Goethe começava a abominar na Alemanha – o sentimentalismo e a severidade idealista, purificativa. Encontraram-se um dia, no ano de 1794, à saída de uma conferência sobre a Natureza, discutiram alguns pontos do que tinham acabado de ouvir e Goethe convidou Schiller a ir até sua casa, onde lhe falou da Metamorfose das Plantas. A um dado momento, para lhe explicar que tinha encontrado, num jardim de Palermo, a «planta originária», a matriz de todas as plantas, aquela de que andava à procura, Goethe desenhou a planta. Schiller, como bom kantiano, olhou para o desenho e disse que se a «planta originária» era uma «ideia», aquele desenho era uma «experiência». A antiga irritação regressou à conversa mas, no fim, Goethe reconheceu que nenhum deles era vencedor, nem se declarava vencido. E ficaram amigos. Quando Schiller morreu, cedo em 1805, não lhe fizeram nenhum mausoléu, nenhuma homenagem especial. Cerca de 20 anos mais tarde decidiram fazer um monumento funerário que honrasse a memória de Schiller e foram à procura dos seus restos. Mas os restos de Schiller estavam misturados com muitos outros. Separaram vários crânios e consta que Goethe acompanhou os anatomistas nessa pesquisa e que foi ele a decidir qual era o crânio. Como Schiller tinha uma cabeça e uma testa muito belas, com uma forma muito especial, e Goethe era um observador atentíssimo, conseguiu, com esses dados, localizá-lo. Fez depois um poema que, na tradução de Paulo Quintela, ainda se chama Ao Crânio de Schiller, embora nas versões alemãs mais recentes tenha sido retirado esse título. O poema é lindíssimo e tem a ver, mais uma vez, com essa compreensão da ligação entre os ossos e a vida, o corpo e o espírito, o visível sobre todas as suas formas e o espírito desse visível. Goethe não tinha muita relação com o invisível, tinha relação era com o espírito do visível, que é uma coisa completamente diferente. Isto para mim foi decisivo, sabe? E estou em crer que ele tem razão, é mesmo o espírito do visível que procuramos. Alguns dos pensadores de que estou mais próxima, como Walter Benjamin e Wittgenstein, provêm desta nascente.

MJS – O que é que distingue o «invisível» do «espírito do visível»?
MFM – É que o invisível é muitas vezes considerado como aquilo que está atrás do visível, ou que está escondido pelo visível, como se o visível tivesse de carregar com o ónus do peso, da degradação, da falta de transparência. Mas porquê? Se no visível é que há transparência, é que há leveza! A ideia de Goethe é que atrás do visível não há nada, no visível é que está tudo. A ideia é a de que escavando no ser se descobre qualquer coisa. Se o abrirmos tem duas leituras – pensar que a obscuridade das nossas entranhas vale mais do que a nossa visibilidade, ou pensar, como Goethe pensa, que há uma relação íntima entre ambas, que são inseparáveis, mas as entranhas não são mais importantes do que aquilo que é visível no corpo. Goethe, por exemplo, nunca estudou as raízes das plantas, estudou foi o caule e as folhas. O que ele mais temia era o caos, o informe, para a ausência de cor. A raiz é, evidentemente, qualquer coisa de decisivo para a vida da planta, mas não diz respeito à metamorfose. A metamorfose tem sempre a ver com a visibilidade, não tem a ver com as forças obscuras. Claro que há forças para o crescimento, mas essas forças são manifestas. As raízes são os bons mediadores para a visibilidade, porque recolhem a água, os sais minerais… mas, se não houver sol, se não houver a transmutação que o sol implica, nada feito. Goethe era o homem da superfície da terra. Também escavava, mas sempre para trazer á luz, não por amor às entranhas. Eu não conseguiria acompanhá-lo em tudo o que fez, o estudo dos ossos por exemplo. Bem sei que naquela época era habitual ter-se esqueletos em casa, para observação e estudo. Nós, hoje em dia, consideramos intocável um esqueleto, não vemos a passagem da estrutura à forma viva. Goethe conhecia muito bem as forças do fundo da vida, temia-as, mas não as reconhecia como matéria de estudo. Basta lermos o Fausto para percebermos como as conhecia bem! Para ele, o que era para ser estudado era o que podia confirmar o sentimento de podermos constituir uma unidade com o todo. Era a sua escolha.

MJS – Acho que fiquei a perceber o sentido da sua tese e agradeço-lhe o modo como me guiou por tais caminhos, tornando-os menos obscuros. Apesar do pouco tempo que nos resta, não resisto a pedir-lhe que me fale de Nietzsche.
MFM – É um autor muito, muito difícil. Comecei por esquecer o que li dele pela primeira vez. E porquê? Porque não só não entendia muita coisa que estava a ler, como aquilo que eu entendia não me agradava nada. Resistia. Havia um aspecto a que eu não resistia, que era o aspecto crítico, o aspecto avassalador relativo à adaptação, á moral e á política instituídas. Mas depois havia um limiar que ele ultrapassava e que era, por um lado, muito atraente, muito escandaloso, muito bem-vindo sob certos aspectos e muito mal vindo sob outros, porque tocava em sentimentos de vida que eu achava que não podiam ser maltratados. Com Colli, aprendi que o pior que aconteceu a Nietzsche foi os seus comentadores e os seus entusiastas, tão susceptíveis de crítica como aqueles que Nietzsche criticava. Nietzsche praticamente nunca viveu. Passou todo o tempo a ler e a escrever e tinha um desprezo bem fundado em relação à Academia, à Universidade e aos poderes instituídos do Estado e da moral. Era um homem que estava mal com a sua época. Na sua primeira obra, há nele ainda um ímpeto de optimismo, a esperança de que é possível restaurar uma experiência de vida, a experiência grega. A partir daí, vai saber que a vida grega não se restaura e, sobretudo, não se restaura aquilo que ele quer recuperar da vida grega e que é a alegria…

MJS – Acha que a poesia e a filosofia vão a par ou a poesia está mais à frente da filosofia?
MFM – Está mais à frente, está. Penso duas coisas sobre a filosofia, duas coisas que não são conciliáveis, e uma delas só a penso mais recentemente. Uma, que sempre pensei, é que a filosofia é uma actividade contemplativa. A poesia, não, a poesia é actividade. Simplesmente. O que eu pensava antes é que a filosofia era um género literário e agora, embora com hesitações, acho que a filosofia é uma actividade contemplativa que se converteu em género literário e que tende a superar-se enquanto género literário. No fundo, a tensão da filosofia é deixar a escrita, é deixar o género literário. Essa não é a tensão da poesia. A filosofia é uma actividade estranhíssima, porque por um lado quer o contacto íntimo com o que há e, por outro, sabe que só experimenta esse contacto através da contemplação. E a contemplação exige, por ordem natural de si mesma, separação. Essa é a matriz da filosofia. A conversão em género literário foi feita por Platão e nunca mais ninguém escreveu como Platão, nem escreveu sob aquele modelo de género literário, que é um ajuste de contas com a poesia. Platão pensava que estava a pagar uma dívida à poesia e que a dívida ficava assim saldada. O pagamento da dívida está na decisão de expulsar os poetas, mas depois de os ter reverenciado e d lhes ter coroado a cabeça. O ajuste de contas de Platão é escrever como escreveu, e isso foi a conversão da filosofia em género literário.

MJS – Poder-se-ia dizer que poesia e filosofia desejam ambas nomear o ser e a coisa?
MFM – Eu diria assim – a poesia deseja nomear o ser e a filosofia também, mas a filosofia introduz, entre a nomeação do ser ou da coisa, o sistema conceptual e argumentativo. Isso não existe em poesia, embora a poesia trabalhe com conceitos, já que qualquer palavra tende a ser conceito. A poesia não é música pura, nem é procura do conceito, é uma ligação, difícil de estabelecer, em termos teóricos, entre a aproximação máxima à musicalidade de uma língua e a intimação mais íntima à compreensão.

MJS – Dê-me uma palavra de eleição.

MFM – Leveza.     

OS POETAS - O Navio de Espelhos

Maria João Seixas entrevista António M. Feijó

12-03-2006
António Feijó

Tem um jeito singular, muito próprio, de falar sobre o saber a que mais dedica o seu tempo – literatura. É de voz doce (com um discreto sotaque que oscila entre o sopro atlântico da nossa costa nortenha e alguns tiques fonéticos dos anglo-saxónicos). Tempera o que diz com um sentido de humor à margem do habitual, ouve os outros atentamente e tira com frequência exemplos do bolso, a maior parte das vezes desconcertantes, para acentuar a relação entre a matéria que vai expondo e outras situações e assuntos. Imagino os seus alunos pasmados, perplexos, curiosos com o que lhes é dado nas aulas. Imagino-os sobretudo motivados, de um modo outro, para as mil e uma entradas que um livro sempre nos pede que saibamos reconhecer e escolher. Esse modo, creio e desejo, contagiará também o leitor desta conversa. A luz da tarde em que nos encontrámos tinha-se posto lilás e havia um ponto de fuga de uma das janelas de sua casa que escorregava para o mar, perto do lugar onde o rio já se tinha derramado. Habita um espaço branco, simples funcional. Muito começou logo a ser dito, com o gravador desligado. A máquina esperava um sinal, parecia uma intrusa sem se saber comportar. Fiz um esforço para carregar no botão e outro maior para parar tudo, quando foi chegada a hora. Por alguma razão conversámos, antes da «conversa», sobre epitáfios e frases célebres antes do último suspiro. Contei-lhe uma das minhas preferidas - «Pelo contrário!», proferida por Ibsen imediatamente antes de morrer, depois de o seu médico o ter observado e, com entusiasmo e convicção, informar a senhora Ibsen que o doente se encontrava bastante melhor do que na véspera. O António escolheu uma enigmática frase, inscrita no túmulo do grande actor que foi W.C. Fields. Parece que tendo uma certa vez visitado Filadélfia, foi-lhe perguntado, quando regressou a Baltimore, como é que tinha sido a estadia. W.C. Fields terá respondido: «I would rather die than live in Philadelphia!» (Preferia morrer a viver em Filadélfia!). Porém, à hora da morte, escolheu como epitáfio: «I would rather be in Philadelphia» (Preferia estar em Filadélfia). Mistérios… que tecem a fertilidade do reino da vida. Que o António celebra, com ou sem literatura. Que ajuda a desvendar aos que o demandarem. Esta conversa foi em sua demanda.
MJS – António, diz-me quem és.
AF- Quando pensei que essa seria a primeira pergunta, ocorreu-me um passo de um romance inglês do século XVIII em que uma personagem pergunta a outra: «Who are you?» (Quem é você?) e ouve como resposta: «Don´t puzzle me.» (Não me confunda). Percebo perfeitamente o sentido desta réplica mas, como tenho de responder, direi, à luz de algumas coisas que acho interessantes e correctas, que sou professor de literatura inglesa e americana, no Departamento de Estudos Anglísticos da Faculdade de Letras de Lisboa, e professor num curso de pós-graduação em Teoria da Literatura. Para além disso sou, naturalmente, muitas outras coisas. A incapacidade de condensar todas essas coisas numa definição, é decerto comum a toda a gente. Há características próprias das pessoas, é claro, mas não sei se por aí se pode chegar a uma ideia de quem somos. Se eu disser que tento perceber e não perder nada do que se passa à minha volta, isto ajuda a definir quem sou? O que me levou a definir-me pelo que faço tem a ver com uma apreciação do profissionalismo como valor. Quando as pessoas deploram, por exemplo, o «estado da nação», sofrem o dilema de ter uma grande preocupação global mas não saber exactamente como agir. A resolução do problema é só uma: ser profissional naquilo que se faz. Ter uma teoria geral sobre o mundo é uma coisa que se passa estritamente dentro de uma cabeça, é um acontecimento privado que, quando muito, é unilateralmente espalhado nas colheradas de cinza em que consiste muito do comentário político da actualidade. Mais do que ter uma teoria geral, importa ser profissional naquilo que se faz, o que implica seguir uma série de protocolos precisos, dependendo da actividade. Se uma pessoa o fizer, então alguma coisa se altera. Mas talvez possa concluir, dizendo que gostava de poder descrever-me, de modo aparentemente paradoxal, como, por formação, um democrata natural.
MJS- Estás-me a falar da exigência do mérito?
AF- Sim, de algum modo, já que o profissionalismo pode ser visto como um termo para o que para alguns poderá ser uma superstição, a superstição do mérito. O mérito é evidentemente um valor no que se faz profissionalmente, em tudo o que se faz e, deste ponto de vista, é um valor transversal, a qualquer actividade. Tem muito a ver com a vontade de conhecer, com o grau de curiosidade e com o que se faz com ela. Há tempos publicou-se as conclusões de um inquérito, onde se lia que 50 por cento dos portugueses julga saber já tudo o que tem a saber e não quer saber mais nada. Há decerto uma falácia na pergunta ou no entendimento dela pelos entrevistados. No contexto particular de, por exemplo, um problema com uma máquina ou um brinquedo, as pessoas que responderam assim têm decerto sempre perguntas a fazer – como é que isto funciona? para que serve? O princípio aristotélico de que o desejo de conhecer é universal parece-me irrefutável.
MJS – A minha curiosidade leva-me agora a querer saber como é que chegaste à Teoria da Literatura? Começaste cedo a ler e a questionar o que lias?
AF- Tenho uma história, desse ponto de vista, que não é muito particular. Como muitos outros, li sempre muito, desde muito cedo. Na minha carreira de estudante, quando chegou a altura de decidir o que fazer, escolhi, como muitos da minha geração, ir para Direito. Estive quase dois anos por lá (experiência sobre a qual haveria muitas coisas interessantes a dizer) e houve um momento em que decidi desistir e pensar no que fazer. Escolhi Filologia, Literatura. Uma das razões, a principal, foi a de fazer da leitura a minha actividade profissional. Quanto à Teoria da Literatura… há dois modos de poder entendê-la – um modo «forte», que pretende estabelecer um método ou algoritmo que, se correctamente utilizado, produz resultados (este modo é para mim completamente infundado), e um outro modo «fraco», que é o que resulta de alguém que lê alguma coisa com atenção e tenta inevitavelmente articular para si mesmo em que consistiu a experiência. Pode articulá-la de várias maneiras, podendo mesmo uma delas ser a de construir «teorias». Não é a maneira mais interessante. Há um autor inglês que diz que construir teorias é um sinal de inteligência, mas abster-se de teorizar é um sinal de sabedoria. É portanto possível usar «Teoria da Literatura», como aliás usamos no programa de pós-graduação desse nome na Faculdade de Letras, como uma etiqueta. Uma etiqueta para denotar o quê? Para denotar tentativas de articulação, que alguns tentam fazer, de problemas particulares que surgem em relação a textos literários, à intersecção entre literatura e filosofia, literatura e história, etc. Incidindo sempre sobre problemas locais, sem ter a pretensão de que, de algum modo, se vai co0nstruir a teoria do que é «o literário», até porque historicamente todas as tentativas de tentar determinar o que é «o literário» se revelam fúteis.
MJS – Correndo o risco de achares que não tem sentido fazer esta pergunta sacramental, pergunto: O que é para ti a literatura?
AF- A pergunta «o que é…?» faz todo o sentido no campo da Física, por exemplo, onde para perguntas como «o que é a densidade?», ou «o que é a massa?», há, presumo, respostas exactas. Mas usar essa forma sintáctica da interrogação peremptória para domínios como a literatura, é aplicar um critério a uma área de problemática em que esse tipo de critério não é funcional. Neste sentido, essa é uma pergunta que, em relação a este objecto particular – a literatura -, talvez não faça sentido. Aquilo que se procurou durante muito tempo descrever como a característica central do que é «o literário», e que portanto definiria a literatura, nunca foi formulado de modo preciso. Houve tentativas brilhantes, como a dos formalistas russos que caracterizavam esse princípio como o da «literariedade». A literariedade, o característico do literário, poria em evidência a ostensividade do enunciado, a natureza estranha daquele modo de dizer, em detrimento do que está a ser dito. Isto não funciona, no entanto, porque na vida real as pessoas utilizam este mesmo tipo de procedimento sem estarem a fazer literatura. Para além disso, a literatura é um corpo muito instável. Hoje poucos percebem que Pessoa, tal como Pascoaes, considerasse Guerra Junqueiro o maior poeta do seu tempo. Entretanto, Junqueiro sofreu um eclipse quase total. Esta questão invoca necessariamente um conhecido debate contemporâneo, o debate sobre o chamado «cânone». O cânone é o conjunto daquelas obras que é objecto de discurso e de referência obrigatórios, bem como de presença atenuada nos programas escolares. Há uma série de teorias em relação a esta persistência dos «clássicos». Teorias conspirativas pretendem que o cânone é uma construção política, descrevendo esse elenco obrigatório de autores como motivado por interesses particulares. As pessoas que falam com grande ferocidade teórica contra a existência de um cânone, na prática não sugerem, todavia, alterações a introduzir no elenco de nomes. Ou seja, com o lado esquerdo da boca denunciam a sua existência, mas com o lado direito não nos dizem por que razão deverá substituir-se, por exemplo, Eça de Queirós por Pinheiro Chagas ou Arnaldo Gama. Em Portugal, há poucos candidatos recém-chegados ao cânone que o perturbem. Há uma peculiaridade adicional: quem impugna teoricamente a existência do cânone, persiste, no entanto, em falar dos autores canónicos. Mas decerto deverá explicar o porquê dessa obstinação, sob pena de ser visto como conivente com os interesses que denuncia, ou ter de explicar qual a natureza do valor que reconhece nos autores de que persiste em falar. A discussão sobre a noção de cânone foi importada dos Estados Unidos, país onde, de facto, alterações parcelares do cânone se dão, e o debate sobre isso é virulento. Têm um significado político, peculiar a uma democracia fortemente igualitária, e traduzem recomposições demográficas. Um aumento significativo da população hispânica, por exemplo, força o currículo a incorporar autores que digam alguma coisa a esse segmento da população. O panteão está desenhado para acolher mentores. É uma espécie de mesa do orçamento literário, que nenhum mandarinato cultural controla, ou se arroga sequer a mera ideia de controlar.
MJS – Esse fenómeno é exclusivo dos Estados Unidos?
AF- Tem a sua origem lá, mas sofre depois um efeito de refracção pela Europa e por outros lugares. Só que nos Estados Unidos isso corresponde a uma agenda política muito forte, que é parte do jogo perpétuo de tentar conseguir sempre uma parte maior do bolo, que é finito mas divisível. Como Portugal é uma sociedade relativamente homogénea, um debate desta natureza é importado teoricamente, mas praticamente não tem reflexo. Continua a usar-se, por exemplo, um acrónimo indecoroso para se referir os países de expressão portuguesa, mas não parece haver grande interesse pela literatura desses lugares antes da década de 50.
MJS- Fala-me da tua estadia nos Estados Unidos. Foste em busca de quê e o que é que de mais significativo trouxeste contigo do tempo que lá viveste? Voltaste «outro», profissionalmente?
AF- Falar dos Estados Unidos, onde andei no último ano do liceu e fiz estudos pós-graduados, é para mim, de há muito, uma conversa perfeitamente ociosa. Por várias razões. Em primeiro lugar, toda a gente julga saber do que fala. A ignorância e os mal-entendidos são tantos que, na tentativa inicial de insinuar que talvez aquele lugar não seja transparente mas opaco, e opaco para mim, apareço como um zelota. Falam-me de filmes e da televisão como reveladores. Mas, aceitar que isso retrate o lugar, decerto que não será um thriller que o fará, mas sim as comédias, em que pessoas tomam pequenos-almoços e levam os filhos à escola. Em segundo lugar, a evidência invocada e o modo como é usada são peculiares. Refere-se um incidente, violento ou presumivelmente aberrante como a decisão de um júri num tribunal, e da sua consideração resultará, dizem-me, sabermos o que pensar de um lugar onde coisas dessas têm lugar. Para além de ignorar a dimensão do país, perceptível se pensarmos no que seria as notícias das oito a cobrir um espaço de Estocolmo a Lisboa, este tipo de evidência fica de tal modo aquém da magnitude do que pretende provar que não vale a pena continuar. De facto, perante um incidente como Columbine, em vez de logo o debater, deverá perguntar-se previamente o que é que o interlocutor pensa dos Estados Unidos, dependendo da resposta falarmos de Columbine ou não. Por outro lado,se, para um português, habitualmente céptico, o futuro é mais ou menos igual ao passado, e o mundo é por natureza envelhecido, a experiência americana é bem menos previsível, porque o futuro é moldável, imediatamente plástico, e, se as possibilidades estiverem presentes, é já. Quem admire a democracia americana deverá pensar sempre que um projecto tão extraordinário, «a casa de toda a gente» como lhe chamou António José Saraiva, é falível.
MJS – A escrita do cronista de jornais pode, no teu entender, atingir o «literário», ser literatura?
AF – É evidente que há coisas publicadas como peças jornalísticas que, mais tarde, adquirem importância literária. Nos casos americano e inglês, a chamada crítica literária é profissional, universitária, e tem um circuito que, sendo embora poroso, é mais ou menos de guilda. Depois, ao lado, no jornalismo, há as recensões críticas do movimento editorial corrente. Essas têm outro âmbito, os universitários lêem-nas com maior ou menor atenção, mas raramente as citam ou usam, enquanto os recenseadores críticos saem das universidades e, de algum modo, reproduzem no exterior esse saber adquirido. São campeonatos diferentes, com troféus distintos. Sai gente das universidades, educada num certo tipo de teorização e de investigação, que vai depois escrever guiões para Hollywood. Por isso é que podemos encontrar num filme americano, dos mais banais, em contrabando ou explicitamente, argumentos e diálogos com muito piscar de olho erudito. Em Portugal acontece vermos coligidos em livro, onde ganham uma unidade importante, textos anteriormente publicados em jornais. É o caso do extraordinário livro de M. S. Lourenço, Os Degraus do Parnaso, ou de Miguel Esteves Cardoso, cujas crónicas fazem dele um émulo do romântico alemão Jean-     -Paul Richter, de quem Agustina Bessa-Luis tanto gosta. Podemos perguntar-nos se uma crónica, ou uma série de crónicas sobre gastronomia, é «literário». Mas, se for visto como uma espécie de guarda-rios que separa o candidato a canónico do não canónico, o «literário» é algo de solene e falso. Há um texto inglês do século XVI que diz que o que torna um autor «clássico» é a sua cooptação por um painel virtual de pares. Se outros autores incorporam «aquilo», tácita ou explicitamente, e o tomam como algo de interessante, dá-se então um efeito de tracção que a posteridade acolhe. É como um grupo de marceneiros a olhar para uma cómoda e a reconhecer que está bem feito. É talvez o modo mais certo de descrever isto.
MJS – Quando pegas num livro de um autor desconhecido avalias logo a sua qualidade, ou interesse, pelas primeiras páginas?
AF – O pintor e autor Wyndham Lewis tinha um teste a que chamava «o teste do taxista», que consistia em abrir um livro, ler uma página e logo ver se valia a pena continuar ou não. Todos nós fazemos juízos de valor mais ou menos expeditos sobre aquilo que lemos. Isto prende-se com a questão de saber o que é que torna um objecto, neste caso um texto, interessante ou valioso. Lembro-me de há anos tentar ler Pedro Páramo de Juan Rulfo. Tentei várias vezes e não consegui, para grande frustração minha, porque percebi que tinha algo de muito sério na mão. Uma vez, em conversa com alguém para quem Pedro Páramo é um texto extraordinário, referi-lhe esta minha incapacidade. Disse-me então: «Isso só quer dizer que não és “rulfiano”». Há, de facto, um domínio em que a nossa relação com um texto particular depende de pertencermos, ou não, àquela família. Uma das coisas que para mim é central na leitura, é perceber qual é a cara da pessoa que escreve (num sentido fisionómico peculiar, já que sou um leitor cego, não alucino as cenas que leio num romance). Tento saber o que é que faz aquela cabeça funcionar. Enquanto se mantém insondável, vou ficando pacientemente à espera. Há um momento em que julgo perceber quem é a pessoa do outro lado. Com o cinema passa-se a mesma coisa, não quero ver um filme se não tiver visto o primeiro plano, não por purismo cinéfilo, que não tenho, mas por ser desse plano, ou contra ele, que todos os outros se engendram. Vejo um filme sempre de dois modos – um, banal, que é o de tentar vê-lo do ponto de vista de quem o fez. Às vezes penso que não sei o que caracteriza quem o fez. Aconteceu-me isso, por exemplo, com o primeiro filme que vi de David Lynch (nada sabia sobre ele), Blue Velvet. Pensei: isto é de alguém que foi submetido a uma tortura intensa e brutal nos seus anos de liceu, mas não percebo exactamente de onde vem. Ao ver mais tarde The Night of the Hunter, de Charles Laughton, que nunca tinha visto e há muito queria ver, percebi que era o percursor de Blue Velvet. (O mesmo se dá, por exemplo, com E.T. e O Milagre de Milão de De Sica.) Às vezes basta estabelecer uma relação entre dois objectos para se obter um laço clarificador. Há evidentemente um perigo: quando analisamos um objecto interessante, se pensamos que o trabalho a fazer é reduzi-lo ao que é familiar, estamos a domesticá-lo e, ipso facto, a destruí-lo. Há quem pense que a interpretação consiste nessa tentativa de neutralizar o que há de tóxico no objecto, de trazê-  -lo para casa.
MJS – Relativamente à interpretação, interessa-me o conceito de «apropriação», que acho diferente de, mas talvez vizinho, disso a que chamas «domesticação».
AF – Claro que é outra coisa, nem que seja o facto de associarmos um texto a outro e estarmos a introduzir tudo num conjunto, num contínuo de objectos da mesma natureza, em relação aos quais estabelecemos diferenças ou parentescos. Rich and strange é parte de um verso de Shakespeare, utilizada por alguns para referir objectos (textos, no caso) que não queremos reduzir, deixando-os intactos na sua riqueza e na sua estranheza. O seu interesse é perpétuo, muito justamente porque, às vezes, a sua natureza nos repele. Quando li pela primeira vez Hamlet, pensei que o autor era um quase psicótico. As descrições da sexualidade são autoflagelações de tal modo ásperas, que pensei que só podiam exceder as personagens, emanar do autor, e ter sido escritas por uma cabeça psicótica. Mais tarde preferi descrições da peça em que a ideia de que conteúdos intratáveis excederiam as personagens e contaminariam o autor, era vista como desinteressante. De facto, um texto dessa magnitude é, de algum modo, intratável, e excede sempre o intérprete.
MJS – O verso de Shakespeare remete-nos para a complexidade de alguns textos. Mas, e os textos (ditos) simples? Podem eles também ser «ricos e estranhos»?
AF – Absolutamente. Há pouco falei do Junqueiro, gosto imenso de Os Simples. Há literatura caracterizada por essa «simplicidade», que é da mais alta e, por vezes, mais difícil literatura. Estou a pensar num pequeno poema do romântico inglês, Wordsworth, um epitáfio de duas quadras, em relação ao qual se escreveram já resmas de papel. Parece um poema simples, mas a sua complexidade é imensa. Num outro poema fala de um campo de narcisos a dançarem ao vento, que suscita, de modo simpático, uma dança no seu coração de observador. Hoje, nem em jogos florais, se ainda existem, isto soaria estranho, mas há dois séculos, os contemporâneos de Wordsworth viram na desmesurada repercussão de um acontecimento tão trivial no íntimo do autor, um sinal de demência. O interessante é perceber por que seria uma trivialidade tida por sintomática de demência. Se conseguirmos perceber porquê, estamos a raspar a fuligem que nos torna ininteligível a natureza maior do acontecimento que esses versos marcam. Este tópico é essencial para a compreensão do chamado Romantismo e dos seus autores. Vamos encontrá-lo em Fernando Pessoa, de um modo muito forte – o problema da «consciência de si», o desajuste sistemático entre o que está a sentir e o que está a pensar, etc. João Gaspar Simões, autor de uma importante biografia de Pessoa, não era grande admirador  dos heterónimos e achava que o melhor de Fernando Pessoa estava nos poemas ortónimos, onde o poeta se reencontra com a genuína «tradição lírica portuguesa». Simões julgava também saber exactamente qual o primeiro poema que Pessoa escrevera como Pessoa: «Ela canta, pobre ceifeira…». Ora o curioso é que «Ela canta, pobre ceifeira…», como Jorge de Sena fez notar nos anos 50, é uma versão que Pessoa fez de um poema de Wordsworth, o que perturba fortemente a noção de que é ali que ele reencontra a tradição lírica portuguesa. Se Gaspar Simões estava neste ponto errado, também estava certo, porque aquele poema é realmente decisivo para Pessoa. É em «Ela canta, pobre ceifeira…» que Pessoa condensa o encontro com um certo tipo de dilemas.
MJS – Estando nós a atingir o termo desta conversa, diz-me em síntese, o que é um escritor «maior».
AF – Seguramente aquele que, como Santo Agostinho ou Rousseau, estando a falar do seu tempo, anuncia e introduz, mesmo que de modo difuso, alterações maciças da consciência. Hoje é mais difícil imaginar que isso possa acontecer literariamente, porque o fluxo do que é comunicável, e comunicado numa tagarelice sem fim, é de tal modo volátil e contínuo que ninguém consegue totalizá-lo, até pelo conjunto dos múltiplos e segregados segmentos em que se organiza. Pensar que houve um tempo em que isso foi possível não é deplorar que o mundo tenha tido uma existência orgânica, mas já não tem. Nunca teve.
MJS – Dá-me uma palavra de eleição.
AF – Não tenho uma palavra de eleição, mas pensei, no entanto, numa breve citação que pode talvez substituí-la. Lembro-me de ter entrado numa livraria, quando andava no liceu, e ter comprado um livro A Condenação à Morte (La mise à mort) de alguém que viria a ser um dos meus autores favoritos, Aragon. O livro tinha uma epígrafe, quatro versos de Pasternak que nunca mais esqueci, embora não tenha memória particular para o que leio. Respondo à tua pergunta com esses quatro versos: «Ora ser velho ´Roma/ Que em vez de carros e andas/ Exige não a comédia/ Mas que se cumpra a condenação à morte.»     
     


Bernardo Sassetti Trio - Ascent 2005 [FULL ALBUM]

Maria João Seixas entrevista Bernardo Sassetti

18-12-2005
Bernardo Sassetti

O auditório da Culturgeste estava cheio, a pedir mais lugares para os que não tinham conseguido entrar. Quando as luzes se apagaram, o ecrã do fundo do palco começou a ser habitado por um puzzle de sombras, puras abstracções de fotografias, projectadas como pontos de fuga para o nosso olhar. Eram cintilações despojadas, difusas numa névoa a preto e branco, dando a ver através da vidraça de uma janela os ramos de uma árvore, ou uma ruela gelada, por onde vultos (Bernardo e uns seus companheiros de estrada?) caminham ao longe, de costas, para o longe de umas tantas casas, ou ainda… Pareceu-me então que todos nós, no conforto das nossas cadeiras, nos pusemos à escuta do sopro frio de um vento que devia estar a varrer aquela rua, aqueles ramos, aqueles casacos e os corpos que cobriam, no instante em que a câmara os fixou. Pareceu-me isso mas o que sei é que se fez silêncio e que só quando os músicos ocuparam os seus lugares em cena é que as nossas palmas nos reaqueceram. A seguir a esse silêncio e a essas primeiras palmas fez-se música e a plateia «estremeceuzinho», como prodigiosamente Guimarães Rosa nos ensinou a dizer. A música que se ouviu foi também feita de silêncios. Longos, alguns. Convocados por uma poderosa batuta invisível, largámos os tiques habituais das salas de concerto – ninguém tossiu, ninguém desembrulhou o rebuçado calmante, ninguém se mexeu nos assentos. O que aconteceu foi que nos integrámos, de respiração suspensa, na voz do concerto, mudos quando as teclas e as cordas e as percussões se calavam, vibrando com os acordes dos instrumentos quando eles falavam alto e forte. Foi na apresentação de Ascent, último e belo disco do (duplo) Trio Bernardo Sassetti, ou melhor do Bernardo Sassetti Trio2. Inesquecível. Quando uma entrevista começa por perguntar quem se é, denuncia logo a curiosidade pelo trilho dos passos de quem está diante de nós. Quantos mais anos tiver a pessoa entrevistada, mais longa será, em princípio, essa viagem à memória de quem somos, donde viemos, o que fizemos para chegar até aqui. Se for jovem, como o Bernardo, corre-se o risco de ouvirmos o relato de um percurso naturalmente mais curto, ainda em dificuldades de balanço. Mas a intensidade e a precisão com que ele se contou, para além de surpreendente, foi reveladora de uma pessoa que cedo descobriu que tinha de estar na vida a tempo inteiro, sem distracções sobre o sentido que era imperativo dar-lhe. Descobriu, no cedo do seu tempo pessoal, que a música, e mais especificamente esse território de liberdade extrema que é o jazz, seria a pauta que moldaria esse sentido. Pauta exigente, que não admite desrespeitos. Entregou-se-lhe sem reservas e, em troca, recebeu dela um dom valioso – a tal batuta poderosa e invisível que, numa sala de concerto ou em casa a ouvirmos um CD, nos guia até quase à fusão com a sua música. Com a música.
MJS – Bernardo, diz-me quem és.
BS- Que difícil! Sou um terrestre, muitas vezes feliz, mas um terrestre que caminha de uma forma muito aérea, muito suspensa, à procura de qualquer coisa, sobretudo na música, que ainda não sabe muito bem o que é. E isso inquieta-me o espírito. Sempre. Vivo com esta inquietação vinte e quatro horas por dia.
MJS- Vives com esse «sobretudo na música» desde quando?
BS- A inquietação que referi tem crescido cá dentro sobretudo desde um período em que não gravei nada com o meu nome, um jejum de seis anos, a seguir à saída do Mundos, o meu segundo disco. Mas o viver a música seriamente vem muito de trás, embora não tivesse logo percebido o que fazer seriamente dela e com ela.
MJS – A tua escolaridade curricular foi sempre acompanhada de estudos de música e de piano?
BS- Comecei, aos dez anos, com estudos de música clássica, acompanhado por dois professores, privados. Nunca frequentei uma escola de música. Cheguei a uma certa altura, sobretudo com o professor António Menéres Barbosa, em que tive que optar – ou era a música improvisada, ou era a música clássica. Ele entregava-me peças para estudar e o que eu fazia era dar-lhes uma volta e interpretá-las à minha maneira, às vezes de uma forma extrema. Fui sempre muito inquieto, até irreverente. Nunca consegui, desde a adolescência, logo na escola, viver bem com demasiadas regras. Era a minha forma de ser e isso espelhou-se na música e na sua aprendizagem. O meu irmão Francisco era o meu ídolo. Nascido seis anos antes de mim, também estudava piano e era a minha referência. Foi assim até eu perceber que a minha música não era aquela música escrita que ele estudava e tocava bem melhor do que eu. Precisava de liberdade para conseguir viver no meio da música. Descobri o jazz, aos doze anos, ao ouvir Bill Evans numa transmissão de RTP (no «Jazz Magazine») de um concerto que ele deu em Lisboa, pouco antes de morrer, no Teatro São Carlos, imagine-se. Fiquei fascinado. E acabei finalmente por optar – foi a primeira grande mudança na minha vida. Pus-me a estudar jazz muito seriamente, o que era muitíssimo complicado na altura em Portugal. Teve também grande importância o facto de ir viver para França durante um ano. O meu pai foi dar um curso sobre Energia na Universidade de Grenoble, eu tinha quinze anos e como sou o último de oito irmãos, o mais novo da família, acompanhei os meus pais. Pensei que aquele ano em França ia ser difícil e que talvez me fizesse desistir da música. Quando entrei na casa que tinha sido alugada e vi um piano na sala, como em Lisboa, nem queria acreditar. Acabou por ser nessa estadia que efectivamente percebi o que pequenas coisas postas à disposição de quem quer aprender e fazer música podem ser determinantes. Descobri um clube-discoteca, de que me fiz sócio, o que me dava a possibilidade de alugar três ou quatro discos por dia. Tinham aparecido os CDs e, com uma aparelhagem simples, comecei a gravá-los em casa. A secção de jazz desse clube era extraordinária e gravei centenas de cassettes. Passava o tempo (que me sobrava das aulas de um curso intensivo de francês para estudantes estrangeiros) a ouvir discos na tal discoteca, a escolher os que queria gravar e, com o piano ao lado, a experimentar improvisações. A obsessão pelo jazz vem daí. Devia ser considerado um adolescente diferente, não especial, mas diferente, já que em vez de ouvir os sons da época passava as horas ligado a Duke Ellington e a Thelonius Monk. Quando regressei, em 1986, com dezasseis anos, já sabia que tinha um interesse interior profundo pelo jazz. Sabia também que esse interesse não era partilhável com muitas pessoas, o que é desconfortável.
MJS – O cumprimento de outros estudos, a seguir ao 12º ano, levou-te para que áreas?
BS- Não sabia muito bem o que queria fazer, mas tinha na ideia ir para Relações Internacionais. Essa ideia durou só uma semana, o tempo de tomar a decisão de me dedicar exclusivamente à música. No fim do liceu tive o primeiro convite para ir tocar fora, a Barcelona. Foi aí que se deu a segunda grande mudança na minha vida, quando percebi que existia um meio muito rico de músicos com a minha idade a aprender e a fazer música. Pessoas com quem eu tinha imenso em comum. A partir da experiência que vivi nesse Festival, e, 1989, resolvi «pôr-me a caminho».
MJS – Deixaste para trás o projecto das Relações Internacionais?
BS- Completamente. Nem cheguei a acabar o ensino secundário. A minha escolaridade ficou incompleta, legalmente tenho apenas o 9º ano, porque chumbei a História no 10º. Não havia História do Jazz! A decisão de abandonar os estudos foi motivo de alguma preocupação em casa. Apostar tudo na música de jazz não parecia muito sensato para assegurar um futuro com credibilidade…
MJS- Não percebi como é que o tal Festival de Barcelona te descobriu e convidou. Já tocavas em clubes?
BS- Falta explicar isso. Pouco depois da revelação do Bill Evans, conheci os irmãos Moreira e o seu Moreiras Jazztet. Foi com eles que iniciei a minha nova aprendizagem da música. Somos primos em terceiro grau e eles adoptaram-me como quinto elemento, partilhando comigo todas as suas experiências. O Miguel era o pianista mas, a partir do momento em que chegou à Universidade para estudar Astro-Física, teve que optar pelas esferas celestes. O quarteto deles, na época, era formado pelo Bernardo (contrabaixo), o Miguel (piano), o Pedro (saxofone tenor) e o João (trompete). Passei a estar com eles diariamente, tocávamos horas a fio e o João chegou mesmo a ir visitar-me a Grenoble. Foi com o Moreiras Jazztet, grupo onde eu já tocava, que fui ao Certame Ibérico de Orquestras de Jazz, em Barcelona, representar Portugal. Num espaço de três dias, com um calor insuportável, conhecemos uma série de músicos absolutamente notáveis. Um deles é até hoje como um grande irmão da música, tal a empatia que temos. Chama-se Perico Sanbeat, é valenciano e, para mim, um dos maiores saxofonistas do mundo. Ter tido a possibilidade de ver e sentir, junto de muitos dos músicos com quem nos cruzámos nesse festival, que a tal obsessão pelo jazz não se passava só comigo, deu-me um enorme ânimo. Mais tarde voltei a tocar em Barcelona, a convite do Zé Eduardo que, depois de ter criado cá a Escola do Hot Clube, foi viver para Barcelona e aí desenvolveu o seu trabalho no Taller de Musics, por onde o Perico e todos os participantes do CD Salssetti passaram. Propôs-nos que formássemos um Trio, baseado em Barcelona, para rodarmos com solistas americanos. É nesse momento que se dá a terceira grande mudança na minha vida, ao perceber que o jazz não é um trabalho individualista e solitário, mas um trabalho de entrega, ao vivo, sobretudo com solistas e músicos diferentes. Acho que é só a partir da compreensão e interiorização desta ideia que se começa a criar uma certa bagagem dentro do meio, difícil, do jazz.
MJS – Há pouco referiste o CD Salssetti, o primeiro disco com o título fundeado no teu nome. Conta-me mais.
BS – Gravei-o em 1992, tinha vinte e três anos. A editora foi a Groove-Movieplay, talvez a primeira editora de jazz portuguesa. Éramos seis músicos – o Perico, os irmãos Rossy (o Mário e o Jordi), o Bob Sands e o José Salgueiro, percussionista português e o homem mais criativo que alguma vez conheci. Houve ainda a participação especial de um músico cubano, a residir nos Estados Unidos, Paquito D’Rivera (clarinete e saxofone alto). Como sentíamos uma grande atracção pelos ritmos afro-cubanos, nomeadamente a salsa, o Paquito propôs esse título simbiótico e revelador – Salssetti (também a alcunha que me arranjou!), que não foi suficiente para atrair muitos ouvintes. Nessa época eu viajava muito entre Barcelona e o resto da Europa, até me fixar por algum tempo em Inglaterra, não sem antes ter tido que fazer um ano de serviço militar em Lisboa. Foi um ano perdido, que não serviu para nada, a não ser para reforçar um calo enorme que tenho na junção entre o polegar e o indicador… Fui «caixa», durante oito meses, na Banda da Região Militar de Lisboa. Tocava tarola e percussão, o que me fez muito bem, de um ponto de vista rítmico. Tive que estudar, aprender a aplicar-me. Sofri bastante nos quatro meses de recruta, mas o tempo da Banda foi hilariante, fora o ter que acordar todos os dias às sete da manhã para ir fazer guardas-de-honra. O momento de glória foi quando a Banda interpretou a «Suite Alentejana» do meu tio-avô, Luís de Freitas Branco, comigo às castanholas.
MJS – Largada a tarola, sentiste uma enorme vontade de sair de Lisboa e partiste de imediato para longe. Para onde?
BS – Fiz as malas, cheio de energia, em direcção a Londres. Fui à aventura e tive a grande sorte da minha vida – conhecer os músicos certos, no momento certo. Por uma razão quase insólita. No meio musical londrino da altura, 1992/93, havia uma escassez enorme de pianistas de jazz. Não percebi bem porquê, mas era assim. Tive, por isso, a oportunidade de tocar praticamente todos os dias, o que me permitia, para além de algumas ajudas familiares nos meses piores, pagar em leasing o meu piano. Deu-me um prazer enorme poder tocar à noite em clubes, de manhã participar em sessões em estúdio com músicos diferentes e, à tarde, fazer jam sessions, por aqui e por ali – em clubes, em bares, em casas particulares. Aconteceu-me o mesmo quando me aventurei a ir até Nova Iorque. É uma cidade que adoro, mas odiei o modo frio como lá se trabalha. Com o tal Trio de Barcelona conheci muitos solistas norte-americanos que viviam em Nova Iorque. Só que eles mudam radicalmente quando vêm à Europa e são outras pessoas quando estão nos Estados Unidos. Na Europa, temos praticamente que fazer de baby-sitters, com tudo muito bem «explicadinho»; em Nova Iorque, ignoram-nos quase totalmente. É uma experiência estranha. Convidam-nos para lá irmos, mas depois, quando chegamos, têm mais em que pensar. Tive alguns atritos, mesmo com músicos com quem já tinha tocado em salas europeias e com quem me tinha entendido bem. Em Londres, terra de cavalheiros, as coisas não se passaram assim.
MJS – E em Portugal, no meio da família dos músicos de jazz, o que é que se passa?
BS – É de facto uma família, os músicos revêem-se e apoiam-se dentro do meio. Existem mais e melhores músicos – se tal for comparado à década de 80, quando comecei. Mas, por incrível que possa parecer, existem também lobbies muito precisos dentro deste meio absolutamente minoritário – os puristas, os avant-gardistas e os… intermédios. Penso, no entanto, que se deviam criar mais oportunidades de ligação entre a nova geração a emergir no jazz nacional e alguns músicos de outros países, independentemente dos estilos musicais. Só assim pode crescer esta família e este é um dever absoluto dos principais organizadores dos festivais de jazz em Portugal. É um pouco desanimador saber que ainda se vive muito com a ideia do «vá para fora e volte cá para dentro» para que os artistas nacionais sejam bem aceites, mediatismo sintomático num país com apreciáveis crises de confiança. Coisas boas e importantes: o Hot Clube, que foi para mim como uma segunda casa. Actualmente não o frequento com a mesma regularidade. Reconheço que a minha vida e a minha música mudaram, talvez por ter passado onze intensos anos, de 1990 a 2001, a tocar à noite em tournées e em clubes de jazz. Agora, por exemplo, é de noite, em casa, que componho. Como gosto cada vez mais de compor, eu próprio me afastei um bocadinho dos clubes. A música que faço reflecte necessariamente esta mudança que se deu em mim, já é uma música um pouco híbrida, tem tanto de jazz, como não tem. Talvez pertença ao grupo dos intermédios!
MJS – Explica-me melhor para eu perceber. O que te trouxe para o jazz foi a profunda necessidade de liberdade na música e a consequente rejeição da pauta escrita. Quando compões, escreves. Deixas espaços em branco na partitura para «acontecer» o improviso?
BS – Não será bem isso. Pergunto-me muitas vezes «o que é que se escreve no jazz»? Escreve-se o leitmotiv, os chamados «temas» que são, no fundo, uma espécie de fio condutor que vai permitir e acolher o improviso. É da sua própria natureza suscitar a improvisação. Está lá inscrito, não está escrito. É um processo diferente daquele que utilizo na composição orquestral tradicional, ou na música para cinema, que tem menos liberdade e é, naturalmente, mais pensado na sua forma.
MJS – Regressemos às edições discográficas da tua música. O que é que veio a seguir ao Salsetti?
BS – Veio o Mundos, em 1996, com muitos dos músicos do Salsetti, mais uns tantos, como a Lucrécia, uma cantora cubana. Antes da gravação do disco e quando o Paquito D’Rivera ficou a tomar conta da United Nations Orchestra ( uma big jazz band), fundada pelo Dizzie Gillespie, fui por ele convidado a integrar essa orquestra e a participar nuns concertos pela Europa. Assinei, entretanto, um contrato por três anos com a Polygram (agora Universal), saiu o Mundos e aquela relação correu mal. A música que faço não se dá bem com a lógica de uma multinacional que, onde aposta, tem que ver de imediato garantias de vendas muito rápidas. Isso não aconteceu com o Mundos e o contrato foi rescindido, com muito boa aceitação de ambas as partes. Foi depois disso que estive seis anos sem gravar. Até 2001. Não sentia necessidade, vivia bem com os concertos que dava, sobretudo fora de Portugal. Foi também quando comecei a deixar aquele ritmo nocturno das actuações em clubes e a dedicar-me mais seriamente à composição. Todos os dias da semana, até às cinco, seis da manhã.
MJS – Até que surge o ano de 2001. O que é que aconteceu em 2001?
BS – Aconteceu a gravação do Nocturno, o meu terceiro disco. Já lá vamos. Antes de 2001 aconteceram-me muitas coisas, uma delas muito importante – a de ter sido agarrado por um outro fascínio, o do cinema. Hoje faz parte de mim, é quase como uma actividade paralela da minha carreira. Recebi um dia a encomenda da banda sonora para um filma de 1930, o Maria do Mar, de Leitão de Barros. O gosto da composição para cinema nunca mais me largou. A encomenda desse trabalho partiu primeiro da estação de telavisão ARTE, mas, depois de alguns problemas contratuais com o canal, foi a Cinemateca Portuguesa que assegurou a conclusão do projecto. Pelo meio desses anos dei várias voltas ao mundo em concertos com um quinteto inglês, do trompetista Guy Barker e, a um dado momento, gravámos um disco com a participação especial do Sting. O Anthony Minghella ouviu o disco e disse - «Quero este quinteto no meu próximo filme». Foi assim que participámos na rodagem do Talented Mr. Ripley, em que tocámos cinco ou seis temas de jaz da banda sonora, da autoria do Gabriel Yared. Estava-se em 1998/99. Participámos ainda na promoção do filme em várias partes do mundo (Estados Unidos, Inglaterra, França, Itália), com temas criados por nós a partir da experiência da rodagem, tocados ao vivo. Foi uma jornada inacreditável. Não imaginava que houvesse orçamentos daquela monta para acompanhar a saída de um filme. Achei tudo grotescamente excessivo, com alguns pormenores patéticos. Só para se ter uma ideia, o custo das viagens e do cattering para a «promoção» de um filme de Hollywood é duas vezes superior ao orçamento para a «produção» de todos os filmes portugueses num ano. No mínimo! É alucinante.
MJS – Conseguiste aprender alguma coisa com esse envolvimento na grande máquina de produção de Hollywood?
BS – As condições dadas por Hollywood aos compositores e músicos são estupendas, mas recorre-se muito à fórmula fácil, para induzir o sentimento nos espectadores. Não suporto isso. Gosto de pensar na música de uma forma abstracta, útil, com silêncio – fundamental na música! Através do Yared tive várias possibilidades para colaboração em novos projectos de filmes, mas não consegui imaginar a minha integração naquele sistema, não consegui ver-me a compor um tema e a trabalhá-lo até ao limite das suas possibilidades, para vir depois um produtor dizer-me - «Não, isto não serve porque não vende.» Toda aquela megalomania, e o star system que a alimenta, não me ensinaram o que quer que fosse de válido. Não quis entrar naquele jogo. Ficou-me, da experiência no Talented Mr. Ripley, o gosto do convívio com o Gabriel Yared e com o Anthony Minghella, ambos com uma sólida cultura musical, e a proximidade, nalguns casos muito agradável, com alguns actores, como o Matt Daemon e o Jude Law, por exemplo. Além de que, durante todo o processo do filme, nós, os músicos, estivemos sempre muito unidos, o que foi óptimo. Mas tomei a decisão de voltar a Lisboa.
MJS – Aproximamo-nos do fim do tal período de «jejum» na edição de discos teus, quando decides regressar a a Lisboa. Começaste logo a preparar o Nocturno?
BS – Logo. Foi como um suspiro de alívio. O Nocturno, que é um trio de jazz clássico – piano, contrabaixo (Carlos Barreto) e bateria (Alexandre Frazão), foi um disco que correu, e continua ainda hoje, a correr muito bem. Assim o diz a editora Clean Feed. O José Álvaro de Morais convidou-me a fazer a música para o Quaresma. No mesmo dia em que o Nocturno foi lançado, no Fórum Lisboa, acabei de pôr a música no filme do José Álvaro. Foi uma grande empreitada e uma bela aventura. Tinha feito antes música para um telefilme, o Facas e Anjos do Eduardo Guedes (também já desaparecido) e tinha gostado muito da relação estabelecida com o realizador. Mas foi o José Álvaro de Morais quem me ensinou verdadeiramente a perceber a importância do silêncio na arte. Foi ele que me ajudou a ver claro como é a partir do silêncio que nasce todo o processo criativo.
MJS – Assisti, em 2005, ao lançamento do teu último disco, Ascent. Para além de conhecer agora melhor a importância do silêncio na tua música, sei que conseguiste, como por magia, guiar a sala da Culturgeste, em momentos de absoluta suspensão da música, até ao silêncio total. Palco e plateia eram um só. Como se quem lá estava soubesse, por um misterioso saber, que também fazia parte daquela partitura. Como é que, do teu lado, viveste o que ali se passou?
BS – A produção do disco e do espectáculo de lançamento foi, da parte de todos os que nele trabalharam, excepcional. De coerência. De respeito mútuo. Fase a fase. Até chegarmos àquela noite e ao encontro com o público, tão inesperado e tão fantástico. Ensaiámos muito pouco em palco, naquele palco. Queria que nós, os músicos, também fôssemos surpreendidos com o input das fotografias que iam sendo projectadas. E fomos. Corria uma energia no ar da sala que nos contaminou no palco. O que ali se passou foi indescritível. Gostei muito de sentir que esta nova proposta foi aceite como um desafio, um risco, tanto para os músicos, como para o público. Ficará connosco para sempre e, de certeza, a minha música vai viajar no futuro com o Ascent (primeiro trabalho de uma nova trilogia sobre a imagem) a correr-me nas veias.
MJS – Dá-me uma palavra de eleição.
BS – Contenção. Quando se vive muito intensamente a música (a música que vive cá dentro, que vem cá de dentro a fervilhar), o grande segredo para a sua transmissão e partilha é o acto contido sobre o que temos e encontramos no fundo de nós. Espelho disso é também a música original para o filme Alice, do Marco Martins, recentemente lançada em CD (uma banda sonora editada… Aleluia!), que me fez olhar para a composição de uma forma diferente. Temos que saber dar tempo ao «tempo» da música. Ouvir-lhe a voz. Ouvir-lhe o silêncio.