Caravaggio, «São Paulo«
sexta-feira, 25 de outubro de 2013
Conversão de São Paulo
1E Saulo,
respirando ainda ameaças e mortes contra os discípulos do Senhor, dirigiu-se ao
sumo sacerdote. 2E pediu-lhe cartas para Damasco, para as sinagogas,
a fim de que, se encontrasse alguns neste Caminho, quer homens quer mulheres,
os conduzisse presos a Jerusalém. 3E, indo no caminho, aconteceu
que, chegando perto de Damasco, subitamente o cercou um resplendor de luz do
céu. 4E, caindo em terra, ouviu uma voz que lhe dizia: Saulo, Saulo,
por que me persegues? 5E ele disse: Quem és, Senhor? E disse o Senhor:
Eu sou Jesus, a quem tu persegues. Duro é para ti recalcitrar contra os
aguilhões. 6E ele, tremendo e atônito, disse: Senhor, que queres que
eu faça? E disse-lhe o Senhor: Levanta-te, e entra na cidade, e lá te será dito
o que te convém fazer. 7E os homens, que iam com ele, pararam
espantados, ouvindo a voz, mas não vendo ninguém. 8E Saulo
levantou-se da terra, e, abrindo os olhos, não via a ninguém. E, guiando-o pela
mão, o conduziram a Damasco. 9E esteve três dias sem ver, e não
comeu nem bebeu. 10E havia em Damasco um certo discípulo chamado
Ananias; e disse-lhe o Senhor em visão: Ananias! E ele respondeu: Eis-me aqui,
Senhor. 11E disse-lhe o Senhor: Levanta-te, e vai à rua chamada
Direita, e pergunta em casa de Judas por um homem de Tarso chamado Saulo; pois
eis que ele está orando; 12E numa visão ele viu que entrava um homem
chamado Ananias, e punha sobre ele a mão, para que tornasse a ver. 13E
respondeu Ananias: Senhor, a muitos ouvi acerca deste homem, quantos males tem
feito aos teus santos em Jerusalém; 14E aqui tem poder dos
principais dos sacerdotes para prender a todos os que invocam o teu nome. 15Disse-lhe,
porém, o Senhor: Vai, porque este é para mim um vaso escolhido, para levar o
meu nome diante dos gentios, e dos reis e dos filhos de Israel. 16E
eu lhe mostrarei quanto deve padecer pelo meu nome. 17E Ananias foi,
e entrou na casa e, impondo-lhe as mãos, disse: Irmão Saulo, o Senhor Jesus,
que te apareceu no caminho por onde vinhas, me enviou, para que tornes a ver e
sejas cheio do Espírito Santo. 18E logo lhe caíram dos olhos como
que umas escamas, e recuperou a vista; e, levantando-se, foi batizado. 19E,
tendo comido, ficou confortado. E esteve Saulo alguns dias com os discípulos
que estavam em Damasco. 20E logo nas sinagogas pregava a Cristo, que
este é o Filho de Deus. 21E todos os que o ouviam estavam atônitos,
e diziam: Não é este o que em Jerusalém perseguia os que invocavam este nome, e
para isso veio aqui, para os levar presos aos principais dos sacerdotes? 22Saulo,
porém, se esforçava muito mais, e confundia os judeus que habitavam em Damasco,
provando que aquele era o Cristo. 23E, tendo passado muitos dias, os
judeus tomaram conselho entre si para o matar. 24Mas as suas ciladas
vieram ao conhecimento de Saulo; e como eles guardavam as portas, tanto de dia
como de noite, para poderem tirar-lhe a vida, 25Tomando-o de noite
os discípulos o desceram, dentro de um cesto, pelo muro. 26E, quando
Saulo chegou a Jerusalém, procurava ajuntar-se aos discípulos, mas todos o
temiam, não crendo que fosse discípulo. 27Então Barnabé, tomando-o
consigo, o trouxe aos apóstolos, e lhes contou como no caminho ele vira ao
Senhor e lhe falara, e como em Damasco falara ousadamente no nome de Jesus. 28E
andava com eles em Jerusalém, entrando e saindo, 29E falava
ousadamente no nome do Senhor Jesus. Falava e disputava também contra os
gregos, mas eles procuravam matá-lo. 30Sabendo-o, porém, os irmãos,
o acompanharam até Cesaréia, e o enviaram a Tarso. 31Assim, pois, as
igrejas em toda a Judéia, e Galiléia e Samaria tinham paz, e eram edificadas; e
se multiplicavam, andando no temor do Senhor e consolação do Espírito Santo. 32E
aconteceu que, passando Pedro por toda a parte, veio também aos santos que
habitavam em Lida. 33E achou ali certo homem, chamado Enéias,
jazendo numa cama havia oito anos, o qual era paralítico. 34E
disse-lhe Pedro: Enéias, Jesus Cristo te dá saúde; levanta-te e faze a tua
cama. E logo se levantou. 35E viram-no todos os que habitavam em
Lida e Sarona, os quais se converteram ao Senhor. 36E havia em Jope
uma discípula chamada Tabita, que traduzido se diz Dorcas. Esta estava cheia de
boas obras e esmolas que fazia. 37E aconteceu naqueles dias que,
enfermando ela, morreu; e, tendo-a lavado, a depositaram num quarto alto. 38E,
como Lida era perto de Jope, ouvindo os discípulos que Pedro estava ali, lhe
mandaram dois homens, rogando-lhe que não se demorasse em vir ter com eles. 39E,
levantando-se Pedro, foi com eles; e quando chegou o levaram ao quarto alto, e
todas as viúvas o rodearam, chorando e mostrando as túnicas e roupas que Dorcas
fizera quando estava com elas. 40Mas Pedro, fazendo sair a todos,
pôs-se de joelhos e orou: e, voltando-se para o corpo, disse: Tabita,
levanta-te. E ela abriu os olhos, e, vendo a Pedro, assentou-se. 41E
ele, dando-lhe a mão, a levantou e, chamando os santos e as viúvas,
apresentou-lha viva. 42E foi isto notório por toda a Jope, e muitos
creram no Senhor. 43E ficou muitos dias em Jope, com um certo Simão
curtidor.
Actos dos Apóstolos, 9
Madalenas
Havia já muitos anos que, de
Combray, não existia para mim tudo o que não fosse o teatro e o drama do meu
deitar, quando, num dia de Inverno, ao regressar a casa, a minha mãe, vendo-me
com frio, me propôs que, contra o meu hábito, tomasse um chá. Comecei por
recusar e, não sei porquê, mudei de opinião. Ela mandou buscar um daqueles
bolos pequenos e roliços chamados «madalenas», que parecem ter sido moldados na
concha estriada de uma vieira. E não tardou que, maquinalmente, abatido pelo
dia taciturno e pela perspectiva de um triste dia seguinte, levei à boca uma
colher de chá onde deixara amolecer um pedaço de madalena. Mas no preciso
instante em que o gole com migalhas d ebolo misturadas me tocou no céu da boca,
estremeci, atento ao que de extraordinário estava a passar-se em mim. Fora
invadido por um prazer delicioso, um prazer isolado, sem a noção da sua causa.
Tornara-me imediatamente indiferentes as vicissitudes da vida, inofensivos os
seus desastres, ilusória a sua brevidade, do mesmo modo que o amor opera,
enchendo-me de uma essência preciosa: ou, antes, tal essência não estava em
mim, era eu mesmo. Deixara de me sentir medíocre, contingente, mortal. Donde
poderia ter vindo aquela poderosa alegria? Sentia-a ligada ao gosto do chá e do
bolo, mas ultrapassava-o infinitamente, não devia ser da mesma natureza. Donde
vinha? Que significava? Onde agarrá-la? Bebo um segundo gole, no qual nada
encontro a mais que no primeiro, e um terceiro que me traz um pouco menos que o
segundo. É tempo de parar, a virtude da bebida parece estar a diminuir. É
evidente que a verdade que procuro não está nela, mas em mim. Ela despertou-a,
mas não a conhece, e não pode mais do que repetir indefinidamente, cada vez com
menos força, aquele mesmo testemunho que não sei interpretar e que, pelo menos,
quero poder tornar a pedir-lhe e reencontrar intacto, à minha disposição, daqui
a pouco, para um decisivo esclarecimento. Poiso a xícara e volto-me para o meu
espírito. A ele cabe encontrar a verdade. Mas como? Grave incerteza, sempre que
o espírito se sente ultrapassado por si mesmo; quando ele, o explorador, é todo
ele o país escuro que tem a explorar e onde lhe não servirá de nada toda a sua
bagagem. Explorar? Não só: criar. Está diante de algo que não é ainda e que só
ele pode tornar real e depois fazer entrar na sua luz.
E recomeço a perguntar a mim
mesmo qual poderia ser esse estado desconhecido, que não trazia consigo
qualquer prova lógica, mas sim a evidência da sua felicidade, da sua realidade,
diante da qual as outras se esfumavam. Pretendo tentar fazê-lo reaparecer. Retrocedo
pelo pensamento ao momento em que tomei a primeira colher de chá. Reencontro o
mesmo estado, sem uma clareza nova. Peço ao meu espírito mais um esforço,, que
me traga mais uma vez a sensação que se escapa. E para que nada quebre o
impulso com que vai tentar reagarrá-la, afasto todos os obstáculos, todas as
ideias alheias, protejo os meus ouvidos e a minha atenção contra os ruídos do
quarto contíguo. Mas, sentindo que o meu espírito se fatiga sem o conseguir,
forço-o, pelo contrário, a tomas essa distracção que eu lhe recusava, a pensar
noutra coisa, a restabelecer-se antes de uma suprema tentativa. Depois, pela
segunda vez, faço o vazio à frente dele, torno a pôr diante dele o sabor ainda
recente daquele primeiro gole, e sinto estremecer em mim qualquer coisa que se
desloca, que queria erguer-se, qualquer que terão desancorado, a uma grande
profundidade; não sei que é, mas sobe lentamente; sinto a resistência e oiço o
rumor das distâncias atravessadas.
Não há dúvidas de que o que assim
palpita no fundo de mim deve ser a imagem, a recordação visual, que, ligada a
este sabor, tenta segui-lo até mim. Mas debate-se muito longe, muito
confusamente; mal posso discernir o reflexo neutro onde se confunde o
inapreensível turbilhão das cores agitadas; mas não posso distinguir a forma,
pedir-lhe, como único intérprete possível, que me traduza o testemunho do seu
contemporâneo, do seu inseparável companheiro, o sabor, pedir-lhe que me diga
de que especial circunstância, de que época do passado se trata.
Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido, Do Lado de Swann
sexta-feira, 18 de outubro de 2013
Apresentações - 1º Período
Carolina Antunes: Auto da Alma, de Gil Vicente (1.11.13)
Carolina Esteves: Amor de Perdição, de Camilo Castelo-Branco (1.11.13)
Francisco: Agamémnon, de Ésquilo (1.11.13)
Artur: A Confiança em Si, de Ralph Waldo Emerson (1.11.13)
Lourenço: De Profundis, de Oscar Wilde (4.11.13)
Sandra: Auto da Feira, de Gil Vicente (4.11.13)
Rafaela: Hamlet, de William Shakespeare (4.11.13)
Mafalda: Viagens na Minha Terra, de Almeida Garrett (4.11.13)
Manuel: Morte em Veneza, de Thomas Mann (8.11.13)
Rita: Eléctra, de Sófocles (8.11.13)
Tiago: As Minas de Salomão, de Rider Haggard (8.11.13)
Nuno: A Queda de Um Anjo, de camilo Castelo-Branco (8.11.13)
Henrique: Moby Dick, Herman Melvile (11.11.13)
Inês: Menina e Moça, de Bernardim Ribeiro (11.11.13)
Diogo Baptista: Emigrantes, de Ferreira de Castro (11.11.13)
Diogo Jesus: Rei Édipo, de Sófocles (11.11.13)
Duarte: Otelo, o Mouro de Veneza, de William Shakespeare (15.11.13)
Inês Coutinho: Medeia, de Eurípides (15.11.13)
João Espinha: Eurico, o Presbítero, de Alexandre Herculano (15.11.13)
Pedro Fernandes: A Relíquia, de Eça de Queirós (15.11.13)
Gonçalo: Caminhada, Henry Thoreau (18.11.13)
Pedro Couto: Prometeu Acorrentado, de Ésquilo (18.11.13)
Carolina Esteves: Amor de Perdição, de Camilo Castelo-Branco (1.11.13)
Francisco: Agamémnon, de Ésquilo (1.11.13)
Artur: A Confiança em Si, de Ralph Waldo Emerson (1.11.13)
Lourenço: De Profundis, de Oscar Wilde (4.11.13)
Sandra: Auto da Feira, de Gil Vicente (4.11.13)
Rafaela: Hamlet, de William Shakespeare (4.11.13)
Mafalda: Viagens na Minha Terra, de Almeida Garrett (4.11.13)
Manuel: Morte em Veneza, de Thomas Mann (8.11.13)
Rita: Eléctra, de Sófocles (8.11.13)
Tiago: As Minas de Salomão, de Rider Haggard (8.11.13)
Nuno: A Queda de Um Anjo, de camilo Castelo-Branco (8.11.13)
Henrique: Moby Dick, Herman Melvile (11.11.13)
Inês: Menina e Moça, de Bernardim Ribeiro (11.11.13)
Diogo Baptista: Emigrantes, de Ferreira de Castro (11.11.13)
Diogo Jesus: Rei Édipo, de Sófocles (11.11.13)
Duarte: Otelo, o Mouro de Veneza, de William Shakespeare (15.11.13)
Inês Coutinho: Medeia, de Eurípides (15.11.13)
João Espinha: Eurico, o Presbítero, de Alexandre Herculano (15.11.13)
Pedro Fernandes: A Relíquia, de Eça de Queirós (15.11.13)
Gonçalo: Caminhada, Henry Thoreau (18.11.13)
Pedro Couto: Prometeu Acorrentado, de Ésquilo (18.11.13)
quinta-feira, 17 de outubro de 2013
Imagens que passais pela retina
Imagens que passais pela
retina
Dos meus
olhos, porque não vos fixais?
Que passais
como a água cristalina
Por uma
fonte para nunca mais!...
Ou para o lago escuro onde termina
Vosso
curso, silente de juncais,
E o vago
medo angustioso domina,
- Porque
ides sem mim, não me levais?
Sem vós o que são os meus olhos abertos?
- O espelho
inútil, meus olhos pagãos!
Aridez de
sucessivos desertos...
Fica sequer, sombra das minhas mãos,
Flexão
casual de meus dedos incertos,
- Estranha
sombra em movimentos vãos.
11
Acabou o Sol & o sino da tarde leva
Os deuses, um a um, a um passado
provisório,
Donde irão emergir para o grande cisma
Do Inverno, o primeiro sopro do qual
Já se ouve subir os píncaros da serra.
Para a deusa branca chegou o fim do seu
enigma,
A sua ruína coroa agora as ruínas do
castelo:
Aqui morrem os deuses & as borboletas.
Rejeitados olhamos apenas,
Recíproco, um brilho no vazio.
M.S. Lourenço, Nada Brahma
Portugal Futuro
O portugal futuro é um país
aonde o puro pássaro é possível
e sobre o leito negro do asfalto da
estrada
as profundas crianças desenharão a giz
esse peixe da infância que vem na enxurrada
e me parece que se chama sável
Mas desenhem elas o que desenharem
é essa a forma do meu país
e chamem elas o que lhe chamarem
portugal será e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este
ter a oeste o mar e a espanha a leste
tudo nele será novo desde os ramos à raiz
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da
matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o portugal futuro
O sol é grande, caem co'a calma as aves
O sol é grande, caem co'a calma as aves
Do tempo em tal sazão que soe ser fria.
Esta água que d'alto cai acordar-me-ia?
Do sono não, mas de cuidados graves.
Ó cousas todas vãs, todas mudaves!
Qual é tal coração qu'em vós confia?
Passam os tempos, vai dia trás dia,
Incertos muito mais que ao vento as naves.
Eu vira já aqui sombras, vira flores,
Vi tantas águas, vi tanta verdura,
As aves todas cantavam d'amores.
Tudo é seco e mudo, e de mestura,
Também mudando-m'eu fiz d'outras cores,
E tudo mais renova: isto é sem cura.
Francisco de Sá de Miranda
domingo, 13 de outubro de 2013
Maria João Seixas entrevista Maria Filomena Molder
Maria João Seixas
entrevista Maria Filomena Molder (Professora Universitária)
Parece-se com um pássaro.
Dos pequeninos, da família dos pardais, frágeis nas tentativas, sempre
bem-sucedidas, de contrariarem o equilíbrio instável dos corpos assentes em
patinhas muito finas para pousarem, contra ventos e outras ameaças, exactamente
onde desejam. Quando fala, quase nos engana. Faz umas pausas de arranque que
nos levam a supor que as palavras se vão começar a enrolar para depois serem
substituídas por outras mais certeiras. Mas quando a ouvimos logo percebemos
que tudo se deve ao recuo da voz perante o pensamento e que a hesitação que
testemunhámos é apenas o tempo de uma sincronia muito própria, já que as frases
surgem límpidas, vestidas por uma musicalidade singular, por uma espécie rara
de cristais. Viaja, a nosso lado, por tempos antigos e por outros mais
modernos, como se as leituras que faz fossem os bordões apropriados, e sempre à
mão, para desenhar o iluminado rumo do trajecto. A bagagem, habitada maioritariamente
por filósofos, poetas e artistas plásticos, parece pesada, mas a Maria
Filomena, quando a desmancha, transforma as recordações e os saberes em flocos
de nuvens, delicados, leves. Fica-nos a ideia de que, sem mesmo se dar conta,
tudo o que diz foi soprado por uma brisa vinda de um longe polvilhado de
enredos, tramas de seduzir até os mais desatentos. Custou-me acabar a conversa,
tantos foram os baús por abrir! Como se tivéssemos sentido, ambas, o pudor de
avançar mais, o pudor de contar o «resto», seja a quem for!
MJS – Maria Filomena,
diga-me quem é.
MFM- Acho que só gostaria
de dizer uma coisa, que sou arisca.
MJS – Não me dá grandes
pistas, assim… Fico a saber que não lhe é nada fácil abrir-se aos outros!
MFM – Sim, sim. Nunca
tive confidentes, não seria capaz.
MJS – Nem teve um diário?
MFM – Em miúda, como
quase todas as raparigas, escrevia para um caderno. Sem qualquer disciplina.
Mais tarde, continuei a escrever mas, embora com data, não era bem um diário,
eram mais registos de impressões, apreciações de coisas que se estavam a
passar, algumas pequenas inquietações ou grande, conforme…
MJS – Quando diz «mais
tarde», é já na idade adulta?
MFM – Adulta, mas ainda
perto da adolescência. Teria vinte e poucos anos.
MJS – Acha que cresceu
tarde?
MFM – Se cresci tarde?
Não, não acho que tenha crescido tarde. Quando era muito nova, achava que
morrer depois dos vinte anos era uma infâmia. Portanto, está a ver, não se isto
quer dizer que se cresceu muito, se pouco. Depois, quando passei os vinte, não
sei se dei logo por isso, que tinha passado os vinte, acho que dei… mas devo
ter-me esquecido e agora olho para essa minha ideia com alguma atenção, com um
pouco de susto e, até, uma certa incompreensão. Na altura achava que podermos
viver muito era uma espécie de infidelidade a certas coisas que se passam
connosco, era um abuso.
MJS – Havia em si uma
relação com o sagrado’
MFM – Isso havia. Tive
uma educação religiosa muito estrita, mas houve também a perda da crença e o
sentido do religioso manteve-se na expectativa de que haja, talvez, uma ligação
parental entre as coisas, mesmo que a não saibamos dizer ou justificar, mas
isso era acompanhado por um cepticismo assustador. Tenho a consciência de que
essa ideia tinha mais a ver com um olhar muito crítico, quase inclemente, sobre
a adaptação.
MJS – Daí o ser arisca…
MFM – Pois!
MJS – Insisto – essa
autocaracterização não quererá também dizer que a surpresa da vida lhe traz
grande incomodidade?
MFM – Acho que não. É um
sentimento, que vem da infância, de não poder ser «apanhada». Não é bem
resistir à surpresa da vida, é mais não querer ser agarrada, como um animal que
foge.
MJS – E agora vou eu
fugir para o terreno onde muito me interessa ouvi-la – o da filosofia. Soube
cedo que queria estudar Filosofia?
MFM – Soube cedo, apesar
de não saber bem o que era exactamente filosofia. Sabia que não queria estudar
ciências, apesar de as ciências me atraírem e de nem sequer ter sido má aluna.
Há nas ciências coisas que me interessam muito, mas sabia que não podia
investigar a ciência, porque a ciência tem que pôr entre parênteses a linguagem
que nós falamos e isso é uma condição que não consigo cumprir de nenhuma
maneira.
MJS – Explique-me melhor
esse conflito entre a ciência e a linguagem que falamos.
MFM – A língua materna
fica entre parênteses. A ciência tende a constituir-se numa linguagem própria
e, quando não consegue, tende a encontrar uma linguagem comum, qualquer que ela
seja. Uma linguagem formularia, ou internacional, ou mesmo inventada, onde se
pode escavar pouco. Pode até ser muito elaborada, mas não se pode escavar, não
há metáforas em matemática, não há as minas que a linguagem transporta consigo,
os palácios da memória, porque os objectos correspondem aos símbolos
inventados. Essa limpidez arquitectónica (parece divina) é o sonho de qualquer
outra ciência, o de chegar a ser matemática. Na altura, eu não tinha
consciência disto que acabei de lhe dizer, mas era isso já o que me inquietava,
e a filosofia, ou o que me levava até à filosofia, era eu não saber o que era.
Não sabendo ainda o que era a filosofia, é estranho não me ter desviado, não
ter arrepiado caminho, por exemplo, para a literatura, de que tanto gostava.
Não podemos nunca estar certos de poder explicar a alguém, com alguma
tranquilidade, o que é a filosofia, isso continua a ser um desafio fascinante.
Tem tudo a ver com uma relação, que eu via na filosofia, com o segredo, com o
mistério, com o enigma (ainda que o enigma também apareça na ciência, mas o
mistério, falando-se embora nele, na ciência não aparece tanto). Há qualquer
coisa deste género na ciência: há uma «coisa» que eu não sei, mas hei-de chegar
a saber! E, na filosofia, dir-se-ia assim: há uma «coisa» que eu não sei e vou
estar sempre nesta situação! Não é que essa «coisa» se desloque, como na
ciência, nós é que nos deslocamos e a «coisa» desloca-se ao mesmo tempo. Para
mim, esse é o grande mistério, o da expectativa que não pode ser preenchida de
modo nenhum. Do meu ponto de vista, que sou céptica. É um paradoxo, não é? Ter
uma expectativa e, ao mesmo tempo, ter uma certeza que não tem nenhum
fundamento a não ser este saber de que, por exemplo, nunca poderei satisfazer a
sede de justiça, ou nunca poderei satisfazer a angústia da morte. Estas e
outras questões não constituem nenhuma prova para o cepticismo, mas são boas
pedras-de-toque para lá se chegar.
MJS – De algum modo, por
aquilo que me disse, acho que a Maria Filomena encontrou na Filosofia a
disciplina par da sua natureza, já que se trata de um território também ele
muito arisco. Conte-me agora como é que foi a aprendizagem.
MFM – Fiz o curso na
Faculdade de Letras de Lisboa. Foi quase sempre uma grande desilusão, do ponto
de vista do que me era ensinado. Era como se estivesse num liceu, embora
melhor, mais vasto. Não foi uma passagem descontínua para um plano onde podia
encontrar aquilo que procurava, mas talvez fosse ingenuidade minha, uma
esperança vã, a de querer encontrar numa instituição de ensino aquilo de que
andava anteriormente à procura. Não podemos ter essa ilusão. Alguns professores
ajudaram-me a aproximar-me um pouco mais do que procurava, é verdade, como é o
caso do professor Oswaldo Market. Não que as disciplinas que ele ensinava
tivessem a ver com o mistério, mas tinham seguramente a ver com o enigma.
Ensinou-me uma experiência fundamental, a de perceber que antes de mim já
outros tinham vivido as questões que se me punham. O que dá uma certa
tranquilidade e, ao mesmo tempo, é causa de um grande sofrimento. O professor
Market deu-me a saber que havia uma coisa, muito bem iluminada por ele, que é
uma pertença comum e que eu podia ter acesso a essa pertença. Ele tinha uma
arte de converter o objecto do seu estudo e das suas aulas no termo de um
inquérito que, às vezes, parecia uma história policial: havia um enigma para
resolver e tinha de se encontrar um fio e nós percebíamos que havia toda a
lógica no fio e na sua procura. Esse mesmo modelo era por ele seguido nas
conferências, sempre apaixonantes.
MJS – Como é que foi o
seu encontro com os gregos?
MFM – É engraçado que o meu
encontro com os gregos deu-se, não nas aulas de Filosofia Antiga, mas,
estranhamente, nalgumas das primeiras aulas de Filosofia Medieval. Quando o
padre Cerqueira perguntou quais eram os nossos autores favoritos, respondi –
Heraclito. Mas foi só mais tarde, pela mão de Giorgio Colli, que percebi bem a
utilidade dos ensinamentos do pensador de Éfeso e o fundamento da minha grande
admiração. O que, na altura da resposta ao padre Cerqueira, eu admirava em
Heraclito era já a sua obscuridade. Colli, para além de ter traduzido todos os
fragmentos de Heraclito, de fontes directas, indirectas, testemunhos de toda a
ordem, escreveu textos fundantes sobre o seu pensamento. Foi ele o primeiro a
ensinar-me (o que eu nunca tinha aprendido na Faculdade!) o verdadeiro sentido
daquela que era uma das razões do fascínio pela obscuridade de Heraclito. Antes
de ler Colli, essa razão era uma razão falsa.
MJS – Uma razão falsa?
MFM – Vou tentar
explicar. Lembra-se do fragmento de Heraclito em que ele fala sobre a harmonia
dos contrários, como a que existe entre o arco e a lira? Na altura não percebi
onde é que estava a contradição entre o arco e a lira. E não houve explicação
por parte do professor de Filosofia Antiga. Creio que não sabia, como eu também
não sabia, o que é que queria dizer o arco e a lira. Imaginei, muito
ignorantemente, que a lira se tocaria, naqueles tempos, com um arco. Ora a lira
toca-se, sempre se tocou, evidentemente, com as mãos. E sabe qual é a
contradição? A lira e o arco são dois símbolos de Apolo. O arco é o arco da
guerra. Os gregos achavam que era Apolo que tinha introduzido o arco, que é uma
arma asiática, não é uma arma grega, e é uma arma assustadora, porque é a
primeira que mata ao longe. Aquele que quer matar já não fere directamente com
as suas mãos, mata de longe. A lira também é um símbolo apolíneo. Apolo tem
essa particularidade de ser o deus musical por excelência e ser também o mais
cruel dos deuses que os gregos conheceram. A crueldade de Apolo é indissociável
da expressão harmónica que ele é. Trata-se de um modo de ver a vida. Mais
interessante ainda é saber que, em épocas muito arcaicas, a lira e o arco eram
feitos a partir da mesma matéria, os cornos de um caprino que, conforme a
inclinação, se transformavam num arco ou numa lira. Heraclito sabia isto, mas
não o dizia, porque ele não dizia quase nada do que sabia. Quem compreendia,
compreendia. É esse o aspecto da obscuridade heraclitiana, não a marca do
absurdo, mas a tonalidade de uma experiência que só pode ser reconhecida por
quem a conhece. Um seu contemporâneo, grego, se fosse culto, deveria saber como
é que o arco e a lira eram feitos nos tempos antigos.
MJS – Heraclito continua
a ser, dos filósofos pré-socráticos, o seu eleito?
MFM – Continua, embora, ainda
por causa de Colli e também de Hoelderlin, esteja muito empenhada em conhecer
melhor Empédocles. Mas Heraclito continua a ser um foco natural de atracção,
porque não há ninguém que conhecemos em filosofia a quem a marca da obscuridade
e do insondável calhe melhor. Colli qualifica-o, entre todos os filósofos que
apresenta, como aquele que sofreu o «pathos» do obscuro. Esse «pathos» do
obscuro é uma experiência de Heraclito, experiência que também tem a ver com
uma espécie de inclemência para com os seus contemporâneos, de desprezo e de
grande sentido crítico em relação à maioria. Mas, ao mesmo tempo, ele sabe que
qualquer ser humano tem acesso ao que mais importa, a fonte da vida, os limites
da alma. Foi ele quem melhor compreendeu, ou melhor, nos deu a compreender, o
modo como os gregos viam a infância. Trata-se de um outro fragmento, em que nos
fala da criança que joga aos dados, é esta a apresentação da vida para o
filósofo – a realeza da criança! A realeza da criança é a leveza, a suspensão,
a harmonia que existe nela antes do trabalho da educação. Trabalho sempre
exercido no sentido da adaptação ao real.
MJS – Passemos agora à
idade moderna. O seu encantamento por Nietzsche também cresceu por via de
Giorgio Colli?
MFM – Sim. Conhecia Colli
como editor de Nietzsche, mas nunca o tinha lido. Fui um dia assistir, na
Assírio e Alvim, a uma conferência sobre Maria Zambrano. Jesús Moreno, o
conferencista, falou de Nietzsche e das leituras que ela dele fizera, muito
importantes para o seu pensamento e falou também de Giorgio Colli, ainda mais
determinante para a obra de Maria Zambrano. Fui logo ler Dopo Nietzsche e não parei mais de ler tudo o que escreveu, que é
uma obra rara, em todos os sentidos. É uma obra de alguém que está muito perto
dos primeiros filósofos, em particular dos pré-socráticos, e ainda mais em
particular de Heraclito. Não encontramos em Colli nenhuma nota de rodapé (a não
ser na sua primeira obra, A Natureza
Gosta de Esconder-se, e por razões argumentativas, no quadro da sua
carreira académica) e é raro que ele cite o texto que está a referir do autor,
porque ele não escreve para divulgar, nem para ser divulgado. Colli crê que a
filosofia é uma actividade contemplativa (isso eu já sabia, mas foi bom ver
confirmado!) e crê também que a escrita dessa actividade contemplativa deve ter
sempre o último lugar.
MJS – O último lugar?
Como é que dá as suas aulas?
MFM – É curioso, ao
princípio escrevia as aulas. Mas não gostava nada de ler o que tinha escrito ou
do esforço que fazia para decorar. Agora não as escrevo. Também não escrevo as
conferências. Deve-se isto a uma disciplina muito grande, que se chama
concentração.
MJS – Nas conferências
percebo melhor, agora nas aulas… como é que reage ás interrupções,
imprevisíveis, dos alunos? Desviam-na do fio condutor?
MFM – Pode-se perder o
fio à meada, é verdade, mas é raro isso acontecer-me. As perguntas feitas pelos
alunos implicam outra entrega, outra concentração. Depois regressa-se ao fio.
No fim do ano, consigo reconstituir todas as aulas que dei, esqueço-me às vezes
é das datas e, para fazer os sumários, chego a pedir os apontamentos dos alunos
para saber exactamente em que dia dei isto ou aquilo.
MJS – O esforço terrível
de escrever uma tese de doutoramento já lá vai… Qual foi o tema?
MFM – Foi Goethe e os
seus textos sobre as plantas, as cores, os animais, a meteorologia… E ainda
alguns textos teóricos sobre isso, ou seja, os textos sobre as plantas e os
textos que ele escreveu sobre o que escreveu sobre as plantas, isto é, sobre a
Natureza, sobre as formas e sobre o modelo que a Natureza é para o surgimento
das formas artísticas.
MJS - Porquê Goethe?
MFM – Ah, isso também tem
um pai, neste caso, Claude Lévi-Strauss, de quem sempre gostei muito. Quando
era professora de liceu, já dava a ler aos meus alunos La Pensée Sauvage , sobretudo
por causa daquele conceito da lógica primitiva e também da ideia da arte ser
sempre miniatural. No Homem Nu há um finale, uma espécie de testamento onde
Lévi- -Strauss no fundo justifica as
suas teses e o estudo da antropologia e do estruturalismo. Aí, além de falar de
Bach e de Ravel, fala de três autores e de três obras que foram muito
importantes para ele: Duerer e os seus textos sobre as proporções dos corpos e
dos rostos; On Growth and Form, de um
grande matemático e biólogo inglês, D’Arcy Thompson; A Metamorfose das Plantas,
de Goethe. Fui ler as três e decidi fazer a tese sobre A Metamorfose.
MJS – Quer contar-me A Metamorfose das Plantas e a razão do
seu interesse?
MFM – O título, devo
dizer-lhe, parece prometer mais do que a obra. Acho que onde existe a palavra
«metamorfose» há sempre, pelo menos para mim, a expectativa de qualquer coisa
de enigmático, e neste livro de Goethe não há isso, não existem apresentações
ou soluções de enigmas. A obra é uma tentativa de compreender o crescimento das
plantas. Não de todas as plantas, mas das plantas que crescem e florescem
anualmente. É um grupo reduzido de plantas, mas são plantas maravilhosas que
florescem todos os anos. Como a tulipa, por exemplo. Hei-de mostrar-lhe umas
polaróides de umas tulipas especiais, tulipas goethianas por excelência. São
aquelas em que a corola, a folha da corola, aquilo a que chamamos uma pétala,
está a crescer numa folha caulinar, isto é, uma folha caulinar está quase a
transformar-se numa corola. E Goethe desenhou-a! E ensina-nos, como de resto os
botânicos também o fazem, que o crescimento de uma planta é como se fosse uma
reprodução e a reprodução é como se fosse um crescimento. São duas versões, uma
contraída, outra expandida. Essas são as duas forças de que ele fala – expansão
e contracção. E é muito interessante ver como ele analisou, através dessas duas
forças, o crescimento das plantas, desde as folhas do embrião até ao fruto.
Cada momento do crescimento é uma metamorfose da folha, em todo o ponto do
crescimento a planta é uma folha! Sempre que ele encontrava casos «anómalos»,
como por exemplo o caso das plantas que têm florescimentos prolíferos, ficava
feliz, porque esses casos comprovavam melhor a acção das duas forças. Goethe
sabia que a Natureza não errava, com esses casos a Natureza estava apenas a
mostrar melhor o princípio da lei.
MJS – O tema parece-me,
desculpe que lhe diga, um pouco extravagante no contexto de uma tese de
Filosofia. Onde é que está a ponte?
MFM – A ponte situa-se
exactamente no que está implicado nessa compreensão das plantas, ou no modo
como ele via as pedras, ou no estudo dos ossos, que até o levou a descobrir,
contrariando a tese da época, que havia no homem o osso intermaxilar… A
constante observação e a minúcia aplicada a todas as coisas que há na terra são
reveladores do seu grande amor pela terra. Conhece a história do crânio de
Schiller? Schiller, dez anos mais novo que Goethe, sempre o quis conhecer. Mas
Goethe não estava interessado em conhecer Schiller , porque este representava tudo
aquilo que Goethe começava a abominar na Alemanha – o sentimentalismo e a
severidade idealista, purificativa. Encontraram-se um dia, no ano de 1794, à
saída de uma conferência sobre a Natureza, discutiram alguns pontos do que
tinham acabado de ouvir e Goethe convidou Schiller a ir até sua casa, onde lhe
falou da Metamorfose das Plantas. A
um dado momento, para lhe explicar que tinha encontrado, num jardim de Palermo,
a «planta originária», a matriz de todas as plantas, aquela de que andava à
procura, Goethe desenhou a planta. Schiller, como bom kantiano, olhou para o
desenho e disse que se a «planta originária» era uma «ideia», aquele desenho
era uma «experiência». A antiga irritação regressou à conversa mas, no fim,
Goethe reconheceu que nenhum deles era vencedor, nem se declarava vencido. E
ficaram amigos. Quando Schiller morreu, cedo em 1805, não lhe fizeram nenhum
mausoléu, nenhuma homenagem especial. Cerca de 20 anos mais tarde decidiram
fazer um monumento funerário que honrasse a memória de Schiller e foram à
procura dos seus restos. Mas os restos de Schiller estavam misturados com
muitos outros. Separaram vários crânios e consta que Goethe acompanhou os
anatomistas nessa pesquisa e que foi ele a decidir qual era o crânio. Como
Schiller tinha uma cabeça e uma testa muito belas, com uma forma muito
especial, e Goethe era um observador atentíssimo, conseguiu, com esses dados,
localizá-lo. Fez depois um poema que, na tradução de Paulo Quintela, ainda se
chama Ao Crânio de Schiller, embora nas
versões alemãs mais recentes tenha sido retirado esse título. O poema é
lindíssimo e tem a ver, mais uma vez, com essa compreensão da ligação entre os
ossos e a vida, o corpo e o espírito, o visível sobre todas as suas formas e o
espírito desse visível. Goethe não tinha muita relação com o invisível, tinha
relação era com o espírito do visível, que é uma coisa completamente diferente.
Isto para mim foi decisivo, sabe? E estou em crer que ele tem razão, é mesmo o
espírito do visível que procuramos. Alguns dos pensadores de que estou mais
próxima, como Walter Benjamin e Wittgenstein, provêm desta nascente.
MJS – O que é que
distingue o «invisível» do «espírito do visível»?
MFM – É que o invisível é
muitas vezes considerado como aquilo que está atrás do visível, ou que está
escondido pelo visível, como se o visível tivesse de carregar com o ónus do
peso, da degradação, da falta de transparência. Mas porquê? Se no visível é que
há transparência, é que há leveza! A ideia de Goethe é que atrás do visível não
há nada, no visível é que está tudo. A ideia é a de que escavando no ser se
descobre qualquer coisa. Se o abrirmos tem duas leituras – pensar que a
obscuridade das nossas entranhas vale mais do que a nossa visibilidade, ou
pensar, como Goethe pensa, que há uma relação íntima entre ambas, que são
inseparáveis, mas as entranhas não são mais importantes do que aquilo que é
visível no corpo. Goethe, por exemplo, nunca estudou as raízes das plantas,
estudou foi o caule e as folhas. O que ele mais temia era o caos, o informe,
para a ausência de cor. A raiz é, evidentemente, qualquer coisa de decisivo
para a vida da planta, mas não diz respeito à metamorfose. A metamorfose tem
sempre a ver com a visibilidade, não tem a ver com as forças obscuras. Claro
que há forças para o crescimento, mas essas forças são manifestas. As raízes
são os bons mediadores para a visibilidade, porque recolhem a água, os sais
minerais… mas, se não houver sol, se não houver a transmutação que o sol
implica, nada feito. Goethe era o homem da superfície da terra. Também
escavava, mas sempre para trazer á luz, não por amor às entranhas. Eu não
conseguiria acompanhá-lo em tudo o que fez, o estudo dos ossos por exemplo. Bem
sei que naquela época era habitual ter-se esqueletos em casa, para observação e
estudo. Nós, hoje em dia, consideramos intocável um esqueleto, não vemos a
passagem da estrutura à forma viva. Goethe conhecia muito bem as forças do
fundo da vida, temia-as, mas não as reconhecia como matéria de estudo. Basta
lermos o Fausto para percebermos como
as conhecia bem! Para ele, o que era para ser estudado era o que podia
confirmar o sentimento de podermos constituir uma unidade com o todo. Era a sua
escolha.
MJS – Acho que fiquei a
perceber o sentido da sua tese e agradeço-lhe o modo como me guiou por tais
caminhos, tornando-os menos obscuros. Apesar do pouco tempo que nos resta, não
resisto a pedir-lhe que me fale de Nietzsche.
MFM – É um autor muito,
muito difícil. Comecei por esquecer o que li dele pela primeira vez. E porquê?
Porque não só não entendia muita coisa que estava a ler, como aquilo que eu
entendia não me agradava nada. Resistia. Havia um aspecto a que eu não
resistia, que era o aspecto crítico, o aspecto avassalador relativo à
adaptação, á moral e á política instituídas. Mas depois havia um limiar que ele
ultrapassava e que era, por um lado, muito atraente, muito escandaloso, muito
bem-vindo sob certos aspectos e muito mal vindo sob outros, porque tocava em
sentimentos de vida que eu achava que não podiam ser maltratados. Com Colli,
aprendi que o pior que aconteceu a Nietzsche foi os seus comentadores e os seus
entusiastas, tão susceptíveis de crítica como aqueles que Nietzsche criticava.
Nietzsche praticamente nunca viveu. Passou todo o tempo a ler e a escrever e
tinha um desprezo bem fundado em relação à Academia, à Universidade e aos
poderes instituídos do Estado e da moral. Era um homem que estava mal com a sua
época. Na sua primeira obra, há nele ainda um ímpeto de optimismo, a esperança
de que é possível restaurar uma experiência de vida, a experiência grega. A
partir daí, vai saber que a vida grega não se restaura e, sobretudo, não se
restaura aquilo que ele quer recuperar da vida grega e que é a alegria…
MJS – Acha que a poesia e
a filosofia vão a par ou a poesia está mais à frente da filosofia?
MFM – Está mais à frente,
está. Penso duas coisas sobre a filosofia, duas coisas que não são
conciliáveis, e uma delas só a penso mais recentemente. Uma, que sempre pensei,
é que a filosofia é uma actividade contemplativa. A poesia, não, a poesia é
actividade. Simplesmente. O que eu pensava antes é que a filosofia era um
género literário e agora, embora com hesitações, acho que a filosofia é uma
actividade contemplativa que se converteu em género literário e que tende a
superar-se enquanto género literário. No fundo, a tensão da filosofia é deixar
a escrita, é deixar o género literário. Essa não é a tensão da poesia. A
filosofia é uma actividade estranhíssima, porque por um lado quer o contacto
íntimo com o que há e, por outro, sabe que só experimenta esse contacto através
da contemplação. E a contemplação exige, por ordem natural de si mesma,
separação. Essa é a matriz da filosofia. A conversão em género literário foi
feita por Platão e nunca mais ninguém escreveu como Platão, nem escreveu sob
aquele modelo de género literário, que é um ajuste de contas com a poesia.
Platão pensava que estava a pagar uma dívida à poesia e que a dívida ficava
assim saldada. O pagamento da dívida está na decisão de expulsar os poetas, mas
depois de os ter reverenciado e d lhes ter coroado a cabeça. O ajuste de contas
de Platão é escrever como escreveu, e isso foi a conversão da filosofia em
género literário.
MJS – Poder-se-ia dizer
que poesia e filosofia desejam ambas nomear o ser e a coisa?
MFM – Eu diria assim – a
poesia deseja nomear o ser e a filosofia também, mas a filosofia introduz,
entre a nomeação do ser ou da coisa, o sistema conceptual e argumentativo. Isso
não existe em poesia, embora a poesia trabalhe com conceitos, já que qualquer
palavra tende a ser conceito. A poesia não é música pura, nem é procura do
conceito, é uma ligação, difícil de estabelecer, em termos teóricos, entre a
aproximação máxima à musicalidade de uma língua e a intimação mais íntima à
compreensão.
MJS – Dê-me uma palavra
de eleição.
MFM – Leveza.
Maria João Seixas entrevista António M. Feijó
12-03-2006
António
Feijó
Tem
um jeito singular, muito próprio, de falar sobre o saber a que mais dedica o
seu tempo – literatura. É de voz doce (com um discreto sotaque que oscila entre
o sopro atlântico da nossa costa nortenha e alguns tiques fonéticos dos
anglo-saxónicos). Tempera o que diz com um sentido de humor à margem do
habitual, ouve os outros atentamente e tira com frequência exemplos do bolso, a
maior parte das vezes desconcertantes, para acentuar a relação entre a matéria
que vai expondo e outras situações e assuntos. Imagino os seus alunos pasmados,
perplexos, curiosos com o que lhes é dado nas aulas. Imagino-os sobretudo
motivados, de um modo outro, para as mil e uma entradas que um livro sempre nos
pede que saibamos reconhecer e escolher. Esse modo, creio e desejo, contagiará
também o leitor desta conversa. A luz da tarde em que nos encontrámos tinha-se
posto lilás e havia um ponto de fuga de uma das janelas de sua casa que
escorregava para o mar, perto do lugar onde o rio já se tinha derramado. Habita
um espaço branco, simples funcional. Muito começou logo a ser dito, com o
gravador desligado. A máquina esperava um sinal, parecia uma intrusa sem se
saber comportar. Fiz um esforço para carregar no botão e outro maior para parar
tudo, quando foi chegada a hora. Por alguma razão conversámos, antes da
«conversa», sobre epitáfios e frases célebres antes do último suspiro.
Contei-lhe uma das minhas preferidas - «Pelo contrário!», proferida por Ibsen
imediatamente antes de morrer, depois de o seu médico o ter observado e, com
entusiasmo e convicção, informar a senhora Ibsen que o doente se encontrava
bastante melhor do que na véspera. O António escolheu uma enigmática frase,
inscrita no túmulo do grande actor que foi W.C. Fields. Parece que tendo uma certa
vez visitado Filadélfia, foi-lhe perguntado, quando regressou a Baltimore, como
é que tinha sido a estadia. W.C. Fields terá
respondido: «I would rather die than live
in Philadelphia!» (Preferia
morrer a viver em Filadélfia!). Porém, à hora da morte, escolheu como epitáfio:
«I would rather be in Philadelphia» (Preferia
estar em Filadélfia). Mistérios… que tecem a fertilidade do reino da vida. Que
o António celebra, com ou sem literatura. Que ajuda a desvendar aos que o
demandarem. Esta conversa foi em sua demanda.
MJS
– António, diz-me quem és.
AF-
Quando pensei que essa seria a primeira pergunta, ocorreu-me um passo de um
romance inglês do século XVIII em que uma personagem pergunta a outra: «Who are you?» (Quem é você?) e ouve
como resposta: «Don´t puzzle me.» (Não
me confunda). Percebo perfeitamente o sentido desta réplica mas, como tenho de
responder, direi, à luz de algumas coisas que acho interessantes e correctas,
que sou professor de literatura inglesa e americana, no Departamento de Estudos
Anglísticos da Faculdade de Letras de Lisboa, e professor num curso de
pós-graduação em Teoria da Literatura. Para além disso sou, naturalmente,
muitas outras coisas. A incapacidade de condensar todas essas coisas numa
definição, é decerto comum a toda a gente. Há características próprias das
pessoas, é claro, mas não sei se por aí se pode chegar a uma ideia de quem
somos. Se eu disser que tento perceber e não perder nada do que se passa à
minha volta, isto ajuda a definir quem sou? O que me levou a definir-me pelo
que faço tem a ver com uma apreciação do profissionalismo como valor. Quando as
pessoas deploram, por exemplo, o «estado da nação», sofrem o dilema de ter uma
grande preocupação global mas não saber exactamente como agir. A resolução do
problema é só uma: ser profissional naquilo que se faz. Ter uma teoria geral
sobre o mundo é uma coisa que se passa estritamente dentro de uma cabeça, é um
acontecimento privado que, quando muito, é unilateralmente espalhado nas
colheradas de cinza em que consiste muito do comentário político da
actualidade. Mais do que ter uma teoria geral, importa ser profissional naquilo
que se faz, o que implica seguir uma série de protocolos precisos, dependendo
da actividade. Se uma pessoa o fizer, então alguma coisa se altera. Mas talvez
possa concluir, dizendo que gostava de poder descrever-me, de modo
aparentemente paradoxal, como, por formação, um democrata natural.
MJS-
Estás-me a falar da exigência do mérito?
AF-
Sim, de algum modo, já que o profissionalismo pode ser visto como um termo para
o que para alguns poderá ser uma superstição, a superstição do mérito. O mérito
é evidentemente um valor no que se faz profissionalmente, em tudo o que se faz
e, deste ponto de vista, é um valor transversal, a qualquer actividade. Tem muito
a ver com a vontade de conhecer, com o grau de curiosidade e com o que se faz
com ela. Há tempos publicou-se as conclusões de um inquérito, onde se lia que
50 por cento dos portugueses julga saber já tudo o que tem a saber e não quer
saber mais nada. Há decerto uma falácia na pergunta ou no entendimento dela
pelos entrevistados. No contexto particular de, por exemplo, um problema com
uma máquina ou um brinquedo, as pessoas que responderam assim têm decerto
sempre perguntas a fazer – como é que isto funciona? para que serve? O
princípio aristotélico de que o desejo de conhecer é universal parece-me
irrefutável.
MJS
– A minha curiosidade leva-me agora a querer saber como é que chegaste à Teoria
da Literatura? Começaste cedo a ler e a questionar o que lias?
AF-
Tenho uma história, desse ponto de vista, que não é muito particular. Como
muitos outros, li sempre muito, desde muito cedo. Na minha carreira de
estudante, quando chegou a altura de decidir o que fazer, escolhi, como muitos
da minha geração, ir para Direito. Estive quase dois anos por lá (experiência
sobre a qual haveria muitas coisas interessantes a dizer) e houve um momento em
que decidi desistir e pensar no que fazer. Escolhi Filologia, Literatura. Uma
das razões, a principal, foi a de fazer da leitura a minha actividade
profissional. Quanto à Teoria da Literatura… há dois modos de poder entendê-la
– um modo «forte», que pretende estabelecer um método ou algoritmo que, se
correctamente utilizado, produz resultados (este modo é para mim completamente
infundado), e um outro modo «fraco», que é o que resulta de alguém que lê
alguma coisa com atenção e tenta inevitavelmente articular para si mesmo em que
consistiu a experiência. Pode articulá-la de várias maneiras, podendo mesmo uma
delas ser a de construir «teorias». Não é a maneira mais interessante. Há um
autor inglês que diz que construir teorias é um sinal de inteligência, mas
abster-se de teorizar é um sinal de sabedoria. É portanto possível usar «Teoria
da Literatura», como aliás usamos no programa de pós-graduação desse nome na
Faculdade de Letras, como uma etiqueta. Uma etiqueta para denotar o quê? Para
denotar tentativas de articulação, que alguns tentam fazer, de problemas
particulares que surgem em relação a textos literários, à intersecção entre
literatura e filosofia, literatura e história, etc. Incidindo sempre sobre
problemas locais, sem ter a pretensão de que, de algum modo, se vai co0nstruir
a teoria do que é «o literário», até porque historicamente todas as tentativas
de tentar determinar o que é «o literário» se revelam fúteis.
MJS
– Correndo o risco de achares que não tem sentido fazer esta pergunta
sacramental, pergunto: O que é para ti a literatura?
AF-
A pergunta «o que é…?» faz todo o sentido no campo da Física, por exemplo, onde
para perguntas como «o que é a densidade?», ou «o que é a massa?», há, presumo,
respostas exactas. Mas usar essa forma sintáctica da interrogação peremptória
para domínios como a literatura, é aplicar um critério a uma área de
problemática em que esse tipo de critério não é funcional. Neste sentido, essa
é uma pergunta que, em relação a este objecto particular – a literatura -, talvez
não faça sentido. Aquilo que se procurou durante muito tempo descrever como a
característica central do que é «o literário», e que portanto definiria a
literatura, nunca foi formulado de modo preciso. Houve tentativas brilhantes,
como a dos formalistas russos que caracterizavam esse princípio como o da
«literariedade». A literariedade, o característico do literário, poria em evidência
a ostensividade do enunciado, a natureza estranha daquele modo de dizer, em
detrimento do que está a ser dito. Isto não funciona, no entanto, porque na
vida real as pessoas utilizam este mesmo tipo de procedimento sem estarem a
fazer literatura. Para além disso, a literatura é um corpo muito instável. Hoje
poucos percebem que Pessoa, tal como Pascoaes, considerasse Guerra Junqueiro o
maior poeta do seu tempo. Entretanto, Junqueiro sofreu um eclipse quase total.
Esta questão invoca necessariamente um conhecido debate contemporâneo, o debate
sobre o chamado «cânone». O cânone é o conjunto daquelas obras que é objecto de
discurso e de referência obrigatórios, bem como de presença atenuada nos
programas escolares. Há uma série de teorias em relação a esta persistência dos
«clássicos». Teorias conspirativas pretendem que o cânone é uma construção
política, descrevendo esse elenco obrigatório de autores como motivado por
interesses particulares. As pessoas que falam com grande ferocidade teórica
contra a existência de um cânone, na prática não sugerem, todavia, alterações a
introduzir no elenco de nomes. Ou seja, com o lado esquerdo da boca denunciam a
sua existência, mas com o lado direito não nos dizem por que razão deverá
substituir-se, por exemplo, Eça de Queirós por Pinheiro Chagas ou Arnaldo Gama.
Em Portugal, há poucos candidatos recém-chegados ao cânone que o perturbem. Há
uma peculiaridade adicional: quem impugna teoricamente a existência do cânone,
persiste, no entanto, em falar dos autores canónicos. Mas decerto deverá
explicar o porquê dessa obstinação, sob pena de ser visto como conivente com os
interesses que denuncia, ou ter de explicar qual a natureza do valor que
reconhece nos autores de que persiste em falar. A discussão sobre a noção de
cânone foi importada dos Estados Unidos, país onde, de facto, alterações
parcelares do cânone se dão, e o debate sobre isso é virulento. Têm um
significado político, peculiar a uma democracia fortemente igualitária, e
traduzem recomposições demográficas. Um aumento significativo da população
hispânica, por exemplo, força o currículo a incorporar autores que digam alguma
coisa a esse segmento da população. O panteão está desenhado para acolher
mentores. É uma espécie de mesa do orçamento literário, que nenhum mandarinato
cultural controla, ou se arroga sequer a mera ideia de controlar.
MJS
– Esse fenómeno é exclusivo dos Estados Unidos?
AF-
Tem a sua origem lá, mas sofre depois um efeito de refracção pela Europa e por
outros lugares. Só que nos Estados Unidos isso corresponde a uma agenda
política muito forte, que é parte do jogo perpétuo de tentar conseguir sempre
uma parte maior do bolo, que é finito mas divisível. Como Portugal é uma
sociedade relativamente homogénea, um debate desta natureza é importado
teoricamente, mas praticamente não tem reflexo. Continua a usar-se, por
exemplo, um acrónimo indecoroso para se referir os países de expressão
portuguesa, mas não parece haver grande interesse pela literatura desses
lugares antes da década de 50.
MJS-
Fala-me da tua estadia nos Estados Unidos. Foste em busca de quê e o que é que
de mais significativo trouxeste contigo do tempo que lá viveste? Voltaste
«outro», profissionalmente?
AF-
Falar dos Estados Unidos, onde andei no último ano do liceu e fiz estudos
pós-graduados, é para mim, de há muito, uma conversa perfeitamente ociosa. Por
várias razões. Em primeiro lugar, toda a gente julga saber do que fala. A
ignorância e os mal-entendidos são tantos que, na tentativa inicial de insinuar
que talvez aquele lugar não seja transparente mas opaco, e opaco para mim,
apareço como um zelota. Falam-me de filmes e da televisão como reveladores.
Mas, aceitar que isso retrate o lugar, decerto que não será um thriller que o fará, mas sim as
comédias, em que pessoas tomam pequenos-almoços e levam os filhos à escola. Em
segundo lugar, a evidência invocada e o modo como é usada são peculiares.
Refere-se um incidente, violento ou presumivelmente aberrante como a decisão de
um júri num tribunal, e da sua consideração resultará, dizem-me, sabermos o que
pensar de um lugar onde coisas dessas têm lugar. Para além de ignorar a
dimensão do país, perceptível se pensarmos no que seria as notícias das oito a
cobrir um espaço de Estocolmo a Lisboa, este tipo de evidência fica de tal modo
aquém da magnitude do que pretende provar que não vale a pena continuar. De
facto, perante um incidente como Columbine, em vez de logo o debater, deverá
perguntar-se previamente o que é que o interlocutor pensa dos Estados Unidos,
dependendo da resposta falarmos de Columbine ou não. Por outro lado,se, para um
português, habitualmente céptico, o futuro é mais ou menos igual ao passado, e
o mundo é por natureza envelhecido, a experiência americana é bem menos
previsível, porque o futuro é moldável, imediatamente plástico, e, se as
possibilidades estiverem presentes, é já. Quem admire a democracia americana
deverá pensar sempre que um projecto tão extraordinário, «a casa de toda a
gente» como lhe chamou António José Saraiva, é falível.
MJS
– A escrita do cronista de jornais pode, no teu entender, atingir o
«literário», ser literatura?
AF
– É evidente que há coisas publicadas como peças jornalísticas que, mais tarde,
adquirem importância literária. Nos casos americano e inglês, a chamada crítica
literária é profissional, universitária, e tem um circuito que, sendo embora
poroso, é mais ou menos de guilda. Depois, ao lado, no jornalismo, há as
recensões críticas do movimento editorial corrente. Essas têm outro âmbito, os universitários
lêem-nas com maior ou menor atenção, mas raramente as citam ou usam, enquanto
os recenseadores críticos saem das universidades e, de algum modo, reproduzem
no exterior esse saber adquirido. São campeonatos diferentes, com troféus
distintos. Sai gente das universidades, educada num certo tipo de teorização e
de investigação, que vai depois escrever guiões para Hollywood. Por isso é que
podemos encontrar num filme americano, dos mais banais, em contrabando ou
explicitamente, argumentos e diálogos com muito piscar de olho erudito. Em
Portugal acontece vermos coligidos em livro, onde ganham uma unidade
importante, textos anteriormente publicados em jornais. É o caso do
extraordinário livro de M. S. Lourenço, Os
Degraus do Parnaso, ou de Miguel Esteves Cardoso, cujas crónicas fazem dele
um émulo do romântico alemão Jean-
-Paul Richter, de quem Agustina Bessa-Luis tanto gosta. Podemos
perguntar-nos se uma crónica, ou uma série de crónicas sobre gastronomia, é
«literário». Mas, se for visto como uma espécie de guarda-rios que separa o
candidato a canónico do não canónico, o «literário» é algo de solene e falso.
Há um texto inglês do século XVI que diz que o que torna um autor «clássico» é
a sua cooptação por um painel virtual de pares. Se outros autores incorporam
«aquilo», tácita ou explicitamente, e o tomam como algo de interessante, dá-se
então um efeito de tracção que a posteridade acolhe. É como um grupo de
marceneiros a olhar para uma cómoda e a reconhecer que está bem feito. É talvez
o modo mais certo de descrever isto.
MJS
– Quando pegas num livro de um autor desconhecido avalias logo a sua qualidade,
ou interesse, pelas primeiras páginas?
AF
– O pintor e autor Wyndham Lewis tinha um teste a que chamava «o teste do
taxista», que consistia em abrir um livro, ler uma página e logo ver se valia a
pena continuar ou não. Todos nós fazemos juízos de valor mais ou menos
expeditos sobre aquilo que lemos. Isto prende-se com a questão de saber o que é
que torna um objecto, neste caso um texto, interessante ou valioso. Lembro-me
de há anos tentar ler Pedro Páramo de
Juan Rulfo. Tentei várias vezes e não consegui, para grande frustração minha,
porque percebi que tinha algo de muito sério na mão. Uma vez, em conversa com
alguém para quem Pedro Páramo é um
texto extraordinário, referi-lhe esta minha incapacidade. Disse-me então: «Isso
só quer dizer que não és “rulfiano”». Há, de facto, um domínio em que a nossa
relação com um texto particular depende de pertencermos, ou não, àquela
família. Uma das coisas que para mim é central na leitura, é perceber qual é a
cara da pessoa que escreve (num sentido fisionómico peculiar, já que sou um
leitor cego, não alucino as cenas que leio num romance). Tento saber o que é
que faz aquela cabeça funcionar. Enquanto se mantém insondável, vou ficando
pacientemente à espera. Há um momento em que julgo perceber quem é a pessoa do
outro lado. Com o cinema passa-se a mesma coisa, não quero ver um filme se não
tiver visto o primeiro plano, não por purismo cinéfilo, que não tenho, mas por
ser desse plano, ou contra ele, que todos os outros se engendram. Vejo um filme
sempre de dois modos – um, banal, que é o de tentar vê-lo do ponto de vista de
quem o fez. Às vezes penso que não sei o que caracteriza quem o fez.
Aconteceu-me isso, por exemplo, com o primeiro filme que vi de David Lynch (nada
sabia sobre ele), Blue Velvet.
Pensei: isto é de alguém que foi submetido a uma tortura intensa e brutal nos
seus anos de liceu, mas não percebo exactamente de onde vem. Ao ver mais tarde The Night of the Hunter, de Charles
Laughton, que nunca tinha visto e há muito queria ver, percebi que era o
percursor de Blue Velvet. (O mesmo se
dá, por exemplo, com E.T. e O Milagre de Milão de De Sica.) Às vezes
basta estabelecer uma relação entre dois objectos para se obter um laço
clarificador. Há evidentemente um perigo: quando analisamos um objecto
interessante, se pensamos que o trabalho a fazer é reduzi-lo ao que é familiar,
estamos a domesticá-lo e, ipso facto,
a destruí-lo. Há quem pense que a interpretação consiste nessa tentativa de
neutralizar o que há de tóxico no objecto, de trazê- -lo para casa.
MJS
– Relativamente à interpretação, interessa-me o conceito de «apropriação», que
acho diferente de, mas talvez vizinho, disso a que chamas «domesticação».
AF
– Claro que é outra coisa, nem que seja o facto de associarmos um texto a outro
e estarmos a introduzir tudo num conjunto, num contínuo de objectos da mesma
natureza, em relação aos quais estabelecemos diferenças ou parentescos. Rich and strange é parte de um verso de
Shakespeare, utilizada por alguns para referir objectos (textos, no caso) que
não queremos reduzir, deixando-os intactos na sua riqueza e na sua estranheza.
O seu interesse é perpétuo, muito justamente porque, às vezes, a sua natureza
nos repele. Quando li pela primeira vez Hamlet,
pensei que o autor era um quase psicótico. As descrições da sexualidade são
autoflagelações de tal modo ásperas, que pensei que só podiam exceder as
personagens, emanar do autor, e ter sido escritas por uma cabeça psicótica.
Mais tarde preferi descrições da peça em que a ideia de que conteúdos
intratáveis excederiam as personagens e contaminariam o autor, era vista como
desinteressante. De facto, um texto dessa magnitude é, de algum modo,
intratável, e excede sempre o intérprete.
MJS
– O verso de Shakespeare remete-nos para a complexidade de alguns textos. Mas,
e os textos (ditos) simples? Podem eles também ser «ricos e estranhos»?
AF
– Absolutamente. Há pouco falei do Junqueiro, gosto imenso de Os Simples. Há literatura caracterizada
por essa «simplicidade», que é da mais alta e, por vezes, mais difícil
literatura. Estou a pensar num pequeno poema do romântico inglês, Wordsworth,
um epitáfio de duas quadras, em relação ao qual se escreveram já resmas de
papel. Parece um poema simples, mas a sua complexidade é imensa. Num outro
poema fala de um campo de narcisos a dançarem ao vento, que suscita, de modo
simpático, uma dança no seu coração de observador. Hoje, nem em jogos florais,
se ainda existem, isto soaria estranho, mas há dois séculos, os contemporâneos
de Wordsworth viram na desmesurada repercussão de um acontecimento tão trivial
no íntimo do autor, um sinal de demência. O interessante é perceber por que
seria uma trivialidade tida por sintomática de demência. Se conseguirmos
perceber porquê, estamos a raspar a fuligem que nos torna ininteligível a
natureza maior do acontecimento que esses versos marcam. Este tópico é
essencial para a compreensão do chamado Romantismo e dos seus autores. Vamos
encontrá-lo em Fernando Pessoa, de um modo muito forte – o problema da «consciência
de si», o desajuste sistemático entre o que está a sentir e o que está a
pensar, etc. João Gaspar Simões, autor de uma importante biografia de Pessoa,
não era grande admirador dos heterónimos
e achava que o melhor de Fernando Pessoa estava nos poemas ortónimos, onde o
poeta se reencontra com a genuína «tradição lírica portuguesa». Simões julgava
também saber exactamente qual o primeiro poema que Pessoa escrevera como
Pessoa: «Ela canta, pobre ceifeira…». Ora o curioso é que «Ela canta, pobre ceifeira…»,
como Jorge de Sena fez notar nos anos 50, é uma versão que Pessoa fez de um poema
de Wordsworth, o que perturba fortemente a noção de que é ali que ele
reencontra a tradição lírica portuguesa. Se Gaspar Simões estava neste ponto
errado, também estava certo, porque aquele poema é realmente decisivo para
Pessoa. É em «Ela canta, pobre ceifeira…» que Pessoa condensa o encontro com um
certo tipo de dilemas.
MJS
– Estando nós a atingir o termo desta conversa, diz-me em síntese, o que é um
escritor «maior».
AF
– Seguramente aquele que, como Santo Agostinho ou Rousseau, estando a falar do
seu tempo, anuncia e introduz, mesmo que de modo difuso, alterações maciças da
consciência. Hoje é mais difícil imaginar que isso possa acontecer
literariamente, porque o fluxo do que é comunicável, e comunicado numa
tagarelice sem fim, é de tal modo volátil e contínuo que ninguém consegue
totalizá-lo, até pelo conjunto dos múltiplos e segregados segmentos em que se
organiza. Pensar que houve um tempo em que isso foi possível não é deplorar que
o mundo tenha tido uma existência orgânica, mas já não tem. Nunca teve.
MJS
– Dá-me uma palavra de eleição.
AF
– Não tenho uma palavra de eleição, mas pensei, no entanto, numa breve citação
que pode talvez substituí-la. Lembro-me de ter entrado numa livraria, quando
andava no liceu, e ter comprado um livro A
Condenação à Morte (La mise à mort)
de alguém que viria a ser um dos meus autores favoritos, Aragon. O livro tinha
uma epígrafe, quatro versos de Pasternak que nunca mais esqueci, embora não
tenha memória particular para o que leio. Respondo à tua pergunta com esses
quatro versos: «Ora ser velho ´Roma/ Que em vez de carros e andas/ Exige não a
comédia/ Mas que se cumpra a condenação à morte.»
Maria João Seixas entrevista Bernardo Sassetti
18-12-2005
Bernardo
Sassetti
O
auditório da Culturgeste estava cheio, a pedir mais lugares para os que não
tinham conseguido entrar. Quando as luzes se apagaram, o ecrã do fundo do palco
começou a ser habitado por um puzzle
de sombras, puras abstracções de fotografias, projectadas como pontos de fuga
para o nosso olhar. Eram cintilações despojadas, difusas numa névoa a preto e
branco, dando a ver através da vidraça de uma janela os ramos de uma árvore, ou
uma ruela gelada, por onde vultos (Bernardo e uns seus companheiros de
estrada?) caminham ao longe, de costas, para o longe de umas tantas casas, ou
ainda… Pareceu-me então que todos nós, no conforto das nossas cadeiras, nos
pusemos à escuta do sopro frio de um vento que devia estar a varrer aquela rua,
aqueles ramos, aqueles casacos e os corpos que cobriam, no instante em que a
câmara os fixou. Pareceu-me isso mas o que sei é que se fez silêncio e que só
quando os músicos ocuparam os seus lugares em cena é que as nossas palmas nos
reaqueceram. A seguir a esse silêncio e a essas primeiras palmas fez-se música
e a plateia «estremeceuzinho», como prodigiosamente Guimarães Rosa nos ensinou
a dizer. A música que se ouviu foi também feita de silêncios. Longos, alguns.
Convocados por uma poderosa batuta invisível, largámos os tiques habituais das
salas de concerto – ninguém tossiu, ninguém desembrulhou o rebuçado calmante,
ninguém se mexeu nos assentos. O que aconteceu foi que nos integrámos, de
respiração suspensa, na voz do concerto, mudos quando as teclas e as cordas e
as percussões se calavam, vibrando com os acordes dos instrumentos quando eles
falavam alto e forte. Foi na apresentação de Ascent, último e belo disco do (duplo) Trio Bernardo Sassetti, ou
melhor do Bernardo Sassetti Trio2. Inesquecível. Quando uma entrevista começa
por perguntar quem se é, denuncia logo a curiosidade pelo trilho dos passos de
quem está diante de nós. Quantos mais anos tiver a pessoa entrevistada, mais
longa será, em princípio, essa viagem à memória de quem somos, donde viemos, o
que fizemos para chegar até aqui. Se for jovem, como o Bernardo, corre-se o
risco de ouvirmos o relato de um percurso naturalmente mais curto, ainda em
dificuldades de balanço. Mas a intensidade e a precisão com que ele se contou,
para além de surpreendente, foi reveladora de uma pessoa que cedo descobriu que
tinha de estar na vida a tempo inteiro, sem distracções sobre o sentido que era
imperativo dar-lhe. Descobriu, no cedo do seu tempo pessoal, que a música, e
mais especificamente esse território de liberdade extrema que é o jazz, seria a
pauta que moldaria esse sentido. Pauta exigente, que não admite desrespeitos.
Entregou-se-lhe sem reservas e, em troca, recebeu dela um dom valioso – a tal
batuta poderosa e invisível que, numa sala de concerto ou em casa a ouvirmos um
CD, nos guia até quase à fusão com a sua música. Com a música.
MJS
– Bernardo, diz-me quem és.
BS-
Que difícil! Sou um terrestre, muitas vezes feliz, mas um terrestre que caminha
de uma forma muito aérea, muito suspensa, à procura de qualquer coisa,
sobretudo na música, que ainda não sabe muito bem o que é. E isso inquieta-me o
espírito. Sempre. Vivo com esta inquietação vinte e quatro horas por dia.
MJS-
Vives com esse «sobretudo na música» desde quando?
BS-
A inquietação que referi tem crescido cá dentro sobretudo desde um período em
que não gravei nada com o meu nome, um jejum de seis anos, a seguir à saída do Mundos, o meu segundo disco. Mas o viver
a música seriamente vem muito de trás, embora não tivesse logo percebido o que
fazer seriamente dela e com ela.
MJS
– A tua escolaridade curricular foi sempre acompanhada de estudos de música e
de piano?
BS-
Comecei, aos dez anos, com estudos de música clássica, acompanhado por dois
professores, privados. Nunca frequentei uma escola de música. Cheguei a uma
certa altura, sobretudo com o professor António Menéres Barbosa, em que tive
que optar – ou era a música improvisada, ou era a música clássica. Ele
entregava-me peças para estudar e o que eu fazia era dar-lhes uma volta e
interpretá-las à minha maneira, às vezes de uma forma extrema. Fui sempre muito
inquieto, até irreverente. Nunca consegui, desde a adolescência, logo na
escola, viver bem com demasiadas regras. Era a minha forma de ser e isso
espelhou-se na música e na sua aprendizagem. O meu irmão Francisco era o meu
ídolo. Nascido seis anos antes de mim, também estudava piano e era a minha
referência. Foi assim até eu perceber que a minha música não era aquela música
escrita que ele estudava e tocava bem melhor do que eu. Precisava de liberdade
para conseguir viver no meio da música. Descobri o jazz, aos doze anos, ao
ouvir Bill Evans numa transmissão de RTP (no «Jazz Magazine») de um concerto
que ele deu em Lisboa, pouco antes de morrer, no Teatro São Carlos, imagine-se.
Fiquei fascinado. E acabei finalmente por optar – foi a primeira grande mudança
na minha vida. Pus-me a estudar jazz muito seriamente, o que era muitíssimo
complicado na altura em Portugal. Teve também grande importância o facto de ir
viver para França durante um ano. O meu pai foi dar um curso sobre Energia na
Universidade de Grenoble, eu tinha quinze anos e como sou o último de oito
irmãos, o mais novo da família, acompanhei os meus pais. Pensei que aquele ano
em França ia ser difícil e que talvez me fizesse desistir da música. Quando
entrei na casa que tinha sido alugada e vi um piano na sala, como em Lisboa,
nem queria acreditar. Acabou por ser nessa estadia que efectivamente percebi o
que pequenas coisas postas à disposição de quem quer aprender e fazer música
podem ser determinantes. Descobri um clube-discoteca, de que me fiz sócio, o
que me dava a possibilidade de alugar três ou quatro discos por dia. Tinham
aparecido os CDs e, com uma aparelhagem simples, comecei a gravá-los em casa. A
secção de jazz desse clube era extraordinária e gravei centenas de cassettes.
Passava o tempo (que me sobrava das aulas de um curso intensivo de francês para
estudantes estrangeiros) a ouvir discos na tal discoteca, a escolher os que
queria gravar e, com o piano ao lado, a experimentar improvisações. A obsessão
pelo jazz vem daí. Devia ser considerado um adolescente diferente, não
especial, mas diferente, já que em vez de ouvir os sons da época passava as
horas ligado a Duke Ellington e a Thelonius Monk. Quando regressei, em 1986,
com dezasseis anos, já sabia que tinha um interesse interior profundo pelo
jazz. Sabia também que esse interesse não era partilhável com muitas pessoas, o
que é desconfortável.
MJS
– O cumprimento de outros estudos, a seguir ao 12º ano, levou-te para que
áreas?
BS-
Não sabia muito bem o que queria fazer, mas tinha na ideia ir para Relações
Internacionais. Essa ideia durou só uma semana, o tempo de tomar a decisão de
me dedicar exclusivamente à música. No fim do liceu tive o primeiro convite
para ir tocar fora, a Barcelona. Foi aí que se deu a segunda grande mudança na
minha vida, quando percebi que existia um meio muito rico de músicos com a
minha idade a aprender e a fazer música. Pessoas com quem eu tinha imenso em
comum. A partir da experiência que vivi nesse Festival, e, 1989, resolvi
«pôr-me a caminho».
MJS
– Deixaste para trás o projecto das Relações Internacionais?
BS-
Completamente. Nem cheguei a acabar o ensino secundário. A minha escolaridade
ficou incompleta, legalmente tenho apenas o 9º ano, porque chumbei a História
no 10º. Não havia História do Jazz! A decisão de abandonar os estudos foi
motivo de alguma preocupação em casa. Apostar tudo na música de jazz não
parecia muito sensato para assegurar um futuro com credibilidade…
MJS-
Não percebi como é que o tal Festival de Barcelona te descobriu e convidou. Já
tocavas em clubes?
BS-
Falta explicar isso. Pouco depois da revelação do Bill Evans, conheci os irmãos
Moreira e o seu Moreiras Jazztet. Foi com eles que iniciei a minha nova
aprendizagem da música. Somos primos em terceiro grau e eles adoptaram-me como
quinto elemento, partilhando comigo todas as suas experiências. O Miguel era o
pianista mas, a partir do momento em que chegou à Universidade para estudar
Astro-Física, teve que optar pelas esferas celestes. O quarteto deles, na
época, era formado pelo Bernardo (contrabaixo), o Miguel (piano), o Pedro
(saxofone tenor) e o João (trompete). Passei a estar com eles diariamente,
tocávamos horas a fio e o João chegou mesmo a ir visitar-me a Grenoble. Foi com
o Moreiras Jazztet, grupo onde eu já tocava, que fui ao Certame Ibérico de
Orquestras de Jazz, em Barcelona, representar Portugal. Num espaço de três
dias, com um calor insuportável, conhecemos uma série de músicos absolutamente
notáveis. Um deles é até hoje como um grande irmão da música, tal a empatia que
temos. Chama-se Perico Sanbeat, é valenciano e, para mim, um dos maiores
saxofonistas do mundo. Ter tido a possibilidade de ver e sentir, junto de
muitos dos músicos com quem nos cruzámos nesse festival, que a tal obsessão
pelo jazz não se passava só comigo, deu-me um enorme ânimo. Mais tarde voltei a
tocar em Barcelona, a convite do Zé Eduardo que, depois de ter criado cá a
Escola do Hot Clube, foi viver para Barcelona e aí desenvolveu o seu trabalho
no Taller de Musics, por onde o
Perico e todos os participantes do CD Salssetti
passaram. Propôs-nos que formássemos um Trio, baseado em Barcelona, para
rodarmos com solistas americanos. É nesse momento que se dá a terceira grande
mudança na minha vida, ao perceber que o jazz não é um trabalho individualista
e solitário, mas um trabalho de entrega, ao vivo, sobretudo com solistas e
músicos diferentes. Acho que é só a partir da compreensão e interiorização
desta ideia que se começa a criar uma certa bagagem dentro do meio, difícil, do
jazz.
MJS
– Há pouco referiste o CD Salssetti,
o primeiro disco com o título fundeado no teu nome. Conta-me mais.
BS
– Gravei-o em 1992, tinha vinte e três anos. A editora foi a Groove-Movieplay,
talvez a primeira editora de jazz portuguesa. Éramos seis músicos – o Perico,
os irmãos Rossy (o Mário e o Jordi), o Bob Sands e o José Salgueiro,
percussionista português e o homem mais criativo que alguma vez conheci. Houve
ainda a participação especial de um músico cubano, a residir nos Estados
Unidos, Paquito D’Rivera (clarinete e saxofone alto). Como sentíamos uma grande
atracção pelos ritmos afro-cubanos, nomeadamente a salsa, o Paquito propôs esse
título simbiótico e revelador – Salssetti
(também a alcunha que me arranjou!), que não foi suficiente para atrair
muitos ouvintes. Nessa época eu viajava muito entre Barcelona e o resto da
Europa, até me fixar por algum tempo em Inglaterra, não sem antes ter tido que
fazer um ano de serviço militar em Lisboa. Foi um ano perdido, que não serviu
para nada, a não ser para reforçar um calo enorme que tenho na junção entre o
polegar e o indicador… Fui «caixa», durante oito meses, na Banda da Região
Militar de Lisboa. Tocava tarola e percussão, o que me fez muito bem, de um
ponto de vista rítmico. Tive que estudar, aprender a aplicar-me. Sofri bastante
nos quatro meses de recruta, mas o tempo da Banda foi hilariante, fora o ter
que acordar todos os dias às sete da manhã para ir fazer guardas-de-honra. O
momento de glória foi quando a Banda interpretou a «Suite Alentejana» do meu
tio-avô, Luís de Freitas Branco, comigo às castanholas.
MJS
– Largada a tarola, sentiste uma enorme vontade de sair de Lisboa e partiste de
imediato para longe. Para onde?
BS
– Fiz as malas, cheio de energia, em direcção a Londres. Fui à aventura e tive
a grande sorte da minha vida – conhecer os músicos certos, no momento certo.
Por uma razão quase insólita. No meio musical londrino da altura, 1992/93,
havia uma escassez enorme de pianistas de jazz. Não percebi bem porquê, mas era
assim. Tive, por isso, a oportunidade de tocar praticamente todos os dias, o
que me permitia, para além de algumas ajudas familiares nos meses piores, pagar
em leasing o meu piano. Deu-me um
prazer enorme poder tocar à noite em clubes, de manhã participar em sessões em
estúdio com músicos diferentes e, à tarde, fazer jam sessions, por aqui e por ali – em clubes, em bares, em casas
particulares. Aconteceu-me o mesmo quando me aventurei a ir até Nova Iorque. É
uma cidade que adoro, mas odiei o modo frio como lá se trabalha. Com o tal Trio
de Barcelona conheci muitos solistas norte-americanos que viviam em Nova
Iorque. Só que eles mudam radicalmente quando vêm à Europa e são outras pessoas
quando estão nos Estados Unidos. Na Europa, temos praticamente que fazer de baby-sitters, com tudo muito bem
«explicadinho»; em Nova Iorque, ignoram-nos quase totalmente. É uma experiência
estranha. Convidam-nos para lá irmos, mas depois, quando chegamos, têm mais em
que pensar. Tive alguns atritos, mesmo com músicos com quem já tinha tocado em
salas europeias e com quem me tinha entendido bem. Em Londres, terra de
cavalheiros, as coisas não se passaram assim.
MJS
– E em Portugal, no meio da família dos músicos de jazz, o que é que se passa?
BS
– É de facto uma família, os músicos revêem-se e apoiam-se dentro do meio.
Existem mais e melhores músicos – se tal for comparado à década de 80, quando
comecei. Mas, por incrível que possa parecer, existem também lobbies muito precisos dentro deste meio
absolutamente minoritário – os puristas, os avant-gardistas
e os… intermédios. Penso, no entanto, que se deviam criar mais oportunidades de
ligação entre a nova geração a emergir no jazz nacional e alguns músicos de
outros países, independentemente dos estilos musicais. Só assim pode crescer
esta família e este é um dever absoluto dos principais organizadores dos
festivais de jazz em Portugal. É um pouco desanimador saber que ainda se vive
muito com a ideia do «vá para fora e volte cá para dentro» para que os artistas
nacionais sejam bem aceites, mediatismo sintomático num país com apreciáveis
crises de confiança. Coisas boas e importantes: o Hot Clube, que foi para mim
como uma segunda casa. Actualmente não o frequento com a mesma regularidade.
Reconheço que a minha vida e a minha música mudaram, talvez por ter passado
onze intensos anos, de 1990 a 2001, a tocar à noite em tournées e em clubes de jazz. Agora, por exemplo, é de noite, em
casa, que componho. Como gosto cada vez mais de compor, eu próprio me afastei
um bocadinho dos clubes. A música que faço reflecte necessariamente esta
mudança que se deu em mim, já é uma música um pouco híbrida, tem tanto de jazz,
como não tem. Talvez pertença ao grupo dos intermédios!
MJS
– Explica-me melhor para eu perceber. O que te trouxe para o jazz foi a
profunda necessidade de liberdade na música e a consequente rejeição da pauta
escrita. Quando compões, escreves. Deixas espaços em branco na partitura para
«acontecer» o improviso?
BS
– Não será bem isso. Pergunto-me muitas vezes «o que é que se escreve no jazz»?
Escreve-se o leitmotiv, os chamados
«temas» que são, no fundo, uma espécie de fio condutor que vai permitir e
acolher o improviso. É da sua própria natureza suscitar a improvisação. Está lá
inscrito, não está escrito. É um processo diferente daquele que utilizo na
composição orquestral tradicional, ou na música para cinema, que tem menos
liberdade e é, naturalmente, mais pensado na sua forma.
MJS
– Regressemos às edições discográficas da tua música. O que é que veio a seguir
ao Salsetti?
BS
– Veio o Mundos, em 1996, com muitos
dos músicos do Salsetti, mais uns
tantos, como a Lucrécia, uma cantora cubana. Antes da gravação do disco e
quando o Paquito D’Rivera ficou a tomar conta da United Nations Orchestra ( uma
big jazz band), fundada pelo Dizzie
Gillespie, fui por ele convidado a integrar essa orquestra e a participar nuns
concertos pela Europa. Assinei, entretanto, um contrato por três anos com a
Polygram (agora Universal), saiu o Mundos
e aquela relação correu mal. A música que faço não se dá bem com a lógica de
uma multinacional que, onde aposta, tem que ver de imediato garantias de vendas
muito rápidas. Isso não aconteceu com o Mundos
e o contrato foi rescindido, com muito boa aceitação de ambas as partes. Foi
depois disso que estive seis anos sem gravar. Até 2001. Não sentia necessidade,
vivia bem com os concertos que dava, sobretudo fora de Portugal. Foi também
quando comecei a deixar aquele ritmo nocturno das actuações em clubes e a
dedicar-me mais seriamente à composição. Todos os dias da semana, até às cinco,
seis da manhã.
MJS
– Até que surge o ano de 2001. O que é que aconteceu em 2001?
BS
– Aconteceu a gravação do Nocturno, o
meu terceiro disco. Já lá vamos. Antes de 2001 aconteceram-me muitas coisas,
uma delas muito importante – a de ter sido agarrado por um outro fascínio, o do
cinema. Hoje faz parte de mim, é quase como uma actividade paralela da minha
carreira. Recebi um dia a encomenda da banda sonora para um filma de 1930, o Maria do Mar, de Leitão de Barros. O
gosto da composição para cinema nunca mais me largou. A encomenda desse
trabalho partiu primeiro da estação de telavisão ARTE, mas, depois de alguns
problemas contratuais com o canal, foi a Cinemateca Portuguesa que assegurou a
conclusão do projecto. Pelo meio desses anos dei várias voltas ao mundo em
concertos com um quinteto inglês, do trompetista Guy Barker e, a um dado
momento, gravámos um disco com a participação especial do Sting. O Anthony
Minghella ouviu o disco e disse - «Quero este quinteto no meu próximo filme».
Foi assim que participámos na rodagem do Talented
Mr. Ripley, em que tocámos cinco ou seis temas de jaz da banda sonora, da
autoria do Gabriel Yared. Estava-se em 1998/99. Participámos ainda na promoção
do filme em várias partes do mundo (Estados Unidos, Inglaterra, França,
Itália), com temas criados por nós a partir da experiência da rodagem, tocados
ao vivo. Foi uma jornada inacreditável. Não imaginava que houvesse orçamentos
daquela monta para acompanhar a saída de um filme. Achei tudo grotescamente
excessivo, com alguns pormenores patéticos. Só para se ter uma ideia, o custo
das viagens e do cattering para a
«promoção» de um filme de Hollywood é duas vezes superior ao orçamento para a
«produção» de todos os filmes portugueses num ano. No mínimo! É alucinante.
MJS
– Conseguiste aprender alguma coisa com esse envolvimento na grande máquina de
produção de Hollywood?
BS
– As condições dadas por Hollywood aos compositores e músicos são estupendas,
mas recorre-se muito à fórmula fácil, para induzir o sentimento nos
espectadores. Não suporto isso. Gosto de pensar na música de uma forma
abstracta, útil, com silêncio – fundamental na música! Através do Yared tive
várias possibilidades para colaboração em novos projectos de filmes, mas não
consegui imaginar a minha integração naquele sistema, não consegui ver-me a
compor um tema e a trabalhá-lo até ao limite das suas possibilidades, para vir
depois um produtor dizer-me - «Não, isto não serve porque não vende.» Toda
aquela megalomania, e o star system
que a alimenta, não me ensinaram o que quer que fosse de válido. Não quis
entrar naquele jogo. Ficou-me, da experiência no Talented Mr. Ripley, o gosto do convívio com o Gabriel Yared e com
o Anthony Minghella, ambos com uma sólida cultura musical, e a proximidade,
nalguns casos muito agradável, com alguns actores, como o Matt Daemon e o Jude
Law, por exemplo. Além de que, durante todo o processo do filme, nós, os
músicos, estivemos sempre muito unidos, o que foi óptimo. Mas tomei a decisão
de voltar a Lisboa.
MJS
– Aproximamo-nos do fim do tal período de «jejum» na edição de discos teus,
quando decides regressar a a Lisboa. Começaste logo a preparar o Nocturno?
BS
– Logo. Foi como um suspiro de alívio. O Nocturno,
que é um trio de jazz clássico – piano, contrabaixo (Carlos Barreto) e bateria
(Alexandre Frazão), foi um disco que correu, e continua ainda hoje, a correr
muito bem. Assim o diz a editora Clean Feed. O José Álvaro de Morais
convidou-me a fazer a música para o Quaresma.
No mesmo dia em que o Nocturno foi
lançado, no Fórum Lisboa, acabei de pôr a música no filme do José Álvaro. Foi
uma grande empreitada e uma bela aventura. Tinha feito antes música para um
telefilme, o Facas e Anjos do Eduardo
Guedes (também já desaparecido) e tinha gostado muito da relação estabelecida
com o realizador. Mas foi o José Álvaro de Morais quem me ensinou
verdadeiramente a perceber a importância do silêncio na arte. Foi ele que me
ajudou a ver claro como é a partir do silêncio que nasce todo o processo
criativo.
MJS
– Assisti, em 2005, ao lançamento do teu último disco, Ascent. Para além de conhecer agora melhor a importância do
silêncio na tua música, sei que conseguiste, como por magia, guiar a sala da
Culturgeste, em momentos de absoluta suspensão da música, até ao silêncio
total. Palco e plateia eram um só. Como se quem lá estava soubesse, por um
misterioso saber, que também fazia parte daquela partitura. Como é que, do teu
lado, viveste o que ali se passou?
BS
– A produção do disco e do espectáculo de lançamento foi, da parte de todos os que
nele trabalharam, excepcional. De coerência. De respeito mútuo. Fase a fase.
Até chegarmos àquela noite e ao encontro com o público, tão inesperado e tão
fantástico. Ensaiámos muito pouco em palco, naquele palco. Queria que nós, os
músicos, também fôssemos surpreendidos com o input das fotografias que iam sendo projectadas. E fomos. Corria
uma energia no ar da sala que nos contaminou no palco. O que ali se passou foi
indescritível. Gostei muito de sentir que esta nova proposta foi aceite como um
desafio, um risco, tanto para os músicos, como para o público. Ficará connosco
para sempre e, de certeza, a minha música vai viajar no futuro com o Ascent (primeiro trabalho de uma nova
trilogia sobre a imagem) a correr-me nas veias.
MJS
– Dá-me uma palavra de eleição.
BS
– Contenção. Quando se vive muito intensamente a música (a música que vive cá
dentro, que vem cá de dentro a fervilhar), o grande segredo para a sua
transmissão e partilha é o acto contido sobre o que temos e encontramos no
fundo de nós. Espelho disso é também a música original para o filme Alice, do Marco Martins, recentemente
lançada em CD (uma banda sonora editada… Aleluia!), que me fez olhar para a
composição de uma forma diferente. Temos que saber dar tempo ao «tempo» da
música. Ouvir-lhe a voz. Ouvir-lhe o silêncio.
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