«Escrever memórias não é uma
decisão simples. Há, é verdade, o consolo de nos revermos à doce luz da
infância, mas a descoberta de que o livre-arbítrio é menor do que imaginávamos
é dolorosa. No dia em que, no final da adolescência, decidi, como a madame de
Merteuil do romance de Laclos, que a minha vida seria «a minha própria obra»,
não sabia até que ponto existiam limites, físicos, psíquicos e sociais, às
minhas acções, mas hoje, passados sessenta anos, reconheço que nem todos os
caminhos me estavam abertos. Em nova, felizmente, não o sabia. As grandes
decisões da minha vida – aquelas que, olhando para trás, reconheço como
determinantes – nem sempre foram tomadas de forma consciente. Quando isto me
dói, refugiu-me nas conjunturas – e muitas houve também – em que a vontade foi
crucial.
Outro aspecto que me espantou foi
a continuidade do ser humano ao longo do tempo. Antes deste exercício,
imaginava que a minha vida havia sido dominada por rupturas tão profundas que
não podiam ter deixado de alterar a minha personalidade. Mas, logo nas
primeiras expressões, como a exigência de ser punida, é visível a impressão digital.
Isto pareceu-me tão bizarro que tive a sensação de ter forjado o documento, em A
História do Bebé, no qual se conta que, com um ano, pedia «tau-tau» à minha
mãe. Mas o facto estava (está) lá.
À medida que ia escrevendo,
descobri outras coisas. Sempre pensara que a emancipação feminina era uma
caminhada até ao Dia Final da Igualdade entre os Sexos. Mas, nas mulheres que
aqui surgem, a minha avó, a minha mãe e eu, há algo que não é linear. Seria a
minha avó menos emancipada do que a minha mãe? E eu tê-lo-ei sido mais do que
esta? A minha filha terá gozado de uma autonomia maior do que a minha? E as
minhas netas? Mesmo sem entrar na questão do condicionalismo genético, a
resposta não é fácil. Finalmente, tive de admitir ser a nossa vida feita de
escolhas, de acasos e de momentos únicos. Não sei, ninguém sabe, qual a ordem
de prioridades.
Num país sem tradição memorialística,
como é o caso português, no qual as memórias representam sobretudo a
justificação de acções pretéritas, procurei apresentar a minha vida friamente.
O facto de ter tentado resgatar tudo aquilo que vivi pode criar a ilusão de
objectividade, mas é evidente que cada um cria a «sua» própria história e a da
«sua» família. Sempre me surpreendeu o contraste entre a imagem que os amigos
me forneciam das respectivas famílias, e o que, sobre as mesmas, ao
conhecê-las, constatava. Embora aquilo que escrevi esteja baseado em factos,
não presumo fornecer a Verdade. O meu relato é verdadeiro, apenas no sentido em
que representa a minha verdade. Outros terão olhado as pessoas, os acontecimentos
e as peripécias de que aqui falo de forma diferente.
Num país conservador, católico e
hipócrita, o tom do livro poderá chocar; no entanto, a minha intenção não foi
essa, mas a de tentar perceber, e de dar a perceber, uma vida, uma família e um
país. Depois de tudo redigido, sofri um ataque de pânico. Uma noite, na
Cinemateca, encontrei um amigo – não, por uma vez, não o nomearei – a quem
revelei a intenção de publicar estas memórias.. Interrogada, disse que sim, que
contava revelar os nomes das pessoas com quem me tinha cruzado. Ele ficou
boquiaberto, tendo-me sugerido que usasse iniciais. Quando resisti á ideia,
aconselhou-me a que deixasse o manuscrito na gaveta, com a especificação de que o mesmo
só deveria ser publicado depois da minha morte. Familiarizada com a cultura
anglo-saxónica, onde obras deste tipo são o pão-nosso de cada dia, não entendi
as reticências, mas, após uns minutos de reflexão, concluí ser evidente que nem
todos os portugueses encaravam a divulgação das suas vidas com o meu à-vontade.
Durante várias noites, sofri de insónias, até que, uma madrugada, acordei com a
resolução tomada. A linha inicial do poema de Emily Brontë, «No coward soul is
mine», a divisa da minha adolescência, tinha de continuar a dirigir as minhas
acções. O que viesse a acontecer, «in the world’s storm-troubled sphere», não
era comigo. O livro seria publicado como o planeara. Sem medos, nem
sentimentalismos.
Por vezes, pensa-se que o género
autobiográfico sempre existiu. Mas a primeira obra a, como tal, ser concebida
data do século IV, tendo sido escrita por um convertido ao Cristianismo, Santo
Agostinho, o qual tão obcecado andava com a salvação da sua alma que teve
necessidade de registar o seu percurso. Os contemporâneos consideraram o texto
mórbido, o que fez com que, durante séculos, não tivessem aparecido imitadores.
Teríamos de esperar pelo século XVIII para que algo de semelhante, as
Confissões de Jean-Jacques Rousseau, surgisse. Nesta obra, já não é Deus, mas o
Indivíduo que ocupa o centro. Curiosamente, o termo «autobiografia» não surgiu
nessa altura, mas apenas em 1809, por obra do poeta Southey. O género, que
viria a ter o seu apogeu nos países anglo-saxónicos, caracterizou-se, durante
décadas, pela austeridade, só tendo adquirido um tom intimista em tempos
recentes.
Ao escrever este livro, procurei, acima
de tudo, ser honesta. Não querendo ferir ninguém, sabia que só valeria a pena
lançar-me no empreendimento desde que fosse capaz de nada esconder. Por razões
óbvias, não quis que nenhuma das pessoas que haviam desempenhado um papel
durante esta fase da minha vida a ele tivessem acesso, nem procurei, com elas,
colmatar falhas de memória. Escrevo sobre o que ficou registado no meu
espírito, sobre o que o acaso me trouxe às mãos e sobre o que, tendo sido por
mim escrito, não foi parar ao caixote do lixo. Procurei fornecer as datas e os
nomes com exactidão. Se, num ou noutro caso, errei, não o fiz deliberadamente.
MÓNICA, Maria Filomena, Bilhete de
Identidade
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