sexta-feira, 29 de novembro de 2013

4.

Nunca tive a arte de prevenir alguém contra mim – também isto agradeço eu ao meu pai incomparável – mesmo quando isso tivesse acabado por ser-me proveitoso. Nunca tive prevenções contra mim, mesmo quando tal possa parecer muito pouco cristão. Pode revolver-se a minha vida em todos os sentidos, que nunca nela se encontrará, senão muito raramente, e propriamente uma só vez, sinais de malevolência dos outros homens contra mim – encontram-se até, pelo contrário, sinais de boa vontade…
 As minhas experiências, e mesmo com aqueles que desiludem toda a gente, depõem em favor deles. Domestico todos os ursos e transmito sensatez aos próprios palhaços. Durante os sete anos que ensinei grego na classe superior do Instituto de Basileia, nunca precisei de aplicar um só castigo; os mais preguiçosos, comigo, eram diligentes. Estive sempre à altura das circunstâncias; é indubitável que não estou preparado para ser meu próprio mestre. Qualquer que seja o instrumento, embora se encontre tão desafinado como está o instrumento «homem», conseguirei sempre, excepto se estiver doente, tirar dele algum melodioso som. Algumas vezes me aconteceu ouvir dizer aos próprios instrumentos que nunca tinha chegado a produzir tais melodias. Quem o deu a entender da mais engraçada maneira foi esse Henrique de Stein, que veio uma vez estar três dias em Sils-Maria, depois de ter tido o cuidado de se anunciar, declarando a toda a gente que não vinha exclusivamente por causa de Engadine. Este homem apreciável, que com toda a impetuosidade de um Junker prussiano se aventurara nos pântanos wagnerianos (e também nos de During) foi, durante três dias, como que transformado por um furacão de liberdade, como alguém que se sente subitamente levantado à própria altura e a quem despontaram asas. Eu não me cansava de repetir que a causa disso eram os ares, que o mesmo se dava com toda a gente e que não estávamos em vão a 6000 pés acima de Bayreuth. Mas ele não queria crer no que lhe eu dizia…
Se, apesar disto, cometeu em relação a mim algumas grandes e pequenas infâmias, não há que buscar a razão disso na «vontade», e ainda menos na «má-vontade». Eu teria antes razões para me queixar da «boa vontade» que para comigo durante tantos anos mostrou.

A minha experiência dá-me o direito de desconfiar, de maneira geral, dos chamados instintos «desinteressados», desse «amor ao próximo» sempre disposto a socorrer e a dar conselhos. Tal amor aparece-me como debilidade, como caso particular da incapacidade de reagir contra os impulsos. A piedade só nos decadentes é virtude. Censuro nos misericordiosos irem facilmente contra o pudor e o sentimento das distâncias. A compaixão degenera, num abrir e fechar de olhos, em coisa da populaça e acaba por tomar grosseiro aspecto. As mãos piedosas podem ter acção destrutiva nos grandes destinos, atacar a solidão magoada, o privilégio que uma grande falta confere. Dominar a piedade constitui para mim nobre virtude: descrevi, sob o nome de Tentação de Zaratustra, aquele momento em que um grito de angústia chega aos ouvidos de Zaratustra e em que a compaixão o invade, último pecado capaz de o tornar infiel a si próprio. É aí que importa dominar-nos; é aí que importa conservar a grandeza da nossa missão, livre do contacto de todos aqueles impulsos vis e mesquinhos que actuam nas acções que se dizem desinteressadas. E eis a prova, talvez decisiva, que teve de fazer Zaratustra, a verdadeira demonstração da sua força.

Nietzsche, Ecce Homo, como se chega a ser o que se é

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