Com alguma surpresa de quem me
escuta, desde há algum tempo venho a dizer que cada vez me interessa menos
falar de literatura. Pode parecer isto uma provocação, a atitude do escritor
que, para se tornar mais interessante, lança declarações inesperadas e
gratuitas. E não é assim. A verdade é que duvido mesmo que se possa falar de literatura como duvido, com
mais razões, que se possa falar de
pintura ou que se possa falar de
música. É claro que se pode falar de tudo, como se fala dos sentimentos e emoções,
seria absurdo pretender reduzir ao silêncio aqueles que escrevem, ou aqueles
que leem, ou aqueles que sentem, ou aqueles que compõem música ou que pintam ou
que esculpem, como se a obra em si mesma já contivesse tudo aquilo que é
possível dizer e que tudo o que vem depois não fosse mais do que interminável
glosa. Não é isso. Acontece, no entanto, que por vezes experimento o desejo de
limitar-me a uma muda contemplação diante de uma obra acabada, pela consciência
que tenho de que, de certa maneira, nos domínios da arte e da literatura
estamos lidando com aquilo a que damos o nome de inefável. E o inefável,
precisamente por sê-lo, é o que não pode ser explicado ainda que tenha de se
evitar a tentação de cair em ideias de caráter transcendente, onde tudo
encontraria uma explicação precisamente no facto de não ter explicação nenhuma.
À primeira vista, uma atitude
como esta não parece racional e, para além disso, choca frontalmente com a
definição que de mim mesmo faço, uma pessoa essencialmente racionalista, isto
é, alguém que tenta que seja a razão a governar a sua vida, inclusivamente num
mundo que poderíamos descrever como paralelo, que é o mundo dos sentimentos que
vivem ao lado da razão. Por outro caminho, Fernando Pessoa aproximou-se muito
do que quero dizer naquele verso que reza: «O que em mim sente está pensando»,
ainda que eu proponha, e no fundo não é mais do que um jogo de palavras, como
um dos muitos com que Fernando Pessoa se entretinha e nos entretém, que
digamos: «O que em mim pensa está sentindo».
Há uma definição que, de certa
maneira, marcou o meu percurso como escritor, sobretudo como romancista, e que,
tenho de confessar, recebo com uma certa impaciência. Trata-se do rótulo gasto
de que sou um romancista histórico, o que se confirmaria tanto por alguns
livros que escrevi como pela minha relação com o tempo e posição perante a
história. Quero dizer, não obstante, que antes de começar a escrever sustentava
como uma evidência palmária (por outro lada nada original) que somos herdeiros
de um tempo, de uma cultura e que, para usar um símile que algumas vezes empreguei, vejo a humanidade como se fosse
o mar. Imaginemos por um momento que estamos numa praia: o mar está ali, e
continuamente aproxima-se em ondas sucessivas que chegam à costa. Pois bem,
essas ondas, que avançam e não poderiam mover-se sem o mar que está por detrás
delas, trazem uma pequena franja de espuma que avança em direção à praia onde
vão acabar. Penso, continuando a usar esta metáfora marítima, que somos nós a
espuma que é transportada nessa onda, essa onda é impelida pelo mar que é o
tempo, todo o tempo que ficou para trás, todo o tempo vivido que nos leva e
empurra. Convertidos numa apoteose de luz e de cor entre o espaço e o mar, somos,
os seres humanos, essa espuma branca brilhante, cintilante, que tem uma breve
vida, que despede um breve fulgor, gerações e gerações que se vão sucedendo
umas às outras transportadas pelo mar que é o tempo. E a história, onde fica?
Sem dúvida a história preocupa-me, embora seja mais certo dizer que o que
realmente me preocupa é o Passado, e sobretudo o destino da onda que se quebra
na praia, a humanidade empurrada pelo tempo e que ao tempo sempre regressa,
levando consigo, no refluxo, uma partitura, um quadro, um livro ou uma
revolução. Por isso prefiro falar mais de vida do que de literatura, sem
esquecer que a literatura está na vida e que sempre teremos perante nós a
ambição de fazer da literatura vida.
Este encontro autor e leitor tem
por título A Estátua e a Pedra, e,
para cumprir o programa que me propus, não tenho outro remédio senão regressar
ao problema de se sou ou não sou romancista histórico. Alexandre Herculano, o
grande historiador português do século XIX, dedicou-se também a escrever
romances históricos (O Monge de Cister,
Eurico o Presbítero e O Bobo),
romances que hoje não são fáceis de ler porque estão escritos com um estilo
muito denso, lento, com demasiada frequência sobrecarregados de um retórica
romântica dificilmente suportável. De toda a forma, são livros cujo
conhecimento é imprescindível se nos referimos á literatura portuguesa do
século XIX. No caso de Alexandre Herculano pode-se dizer que a sua obra
literária foi uma consequência direta do seu trabalho de historiador.
Detenhamo-nos agora num outro autor português, mais tardio, muito menos
importante, produto de outra formação, para não dizer que não teve nenhuma.
Falemos então deste que está aqui, sem estabelecer qualquer tipo de comparação.
Tendo eu começado a minha vida literária muito cedo, uma vez que aos vinte e
cinco anos publiquei um romance que se não era bom tão-pouco era mau, só vinte
anos depois voltei a publicar um livro, facto que, por certo, induziu algumas
pessoas de boa vontade a perguntar-se se o autor decidiu ficar calado durante
anos para ganhar experiências vitais que depois podia trasladar para a
literatura. Obviamente respondo que não, que ninguém tem a certeza de viver
mais vinte anos. Seria absurdo dizer: «Vou agora esperar vinte anos», como se
os tivéssemos garantidos, «para, depois disso, começar a escrever com mais
rigor e seriedade». Não foi assim, e de resto toda a minha vida foi feita sem
planos, sem projetos, sem estratégias, sem definir caminhos para chegar a
determinados objetivos. Na vida, mas também na literatura.
José Saramago, A Estátua e a Pedra
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