Maria João Seixas
entrevista Maria Filomena Molder (Professora Universitária)
Parece-se com um pássaro.
Dos pequeninos, da família dos pardais, frágeis nas tentativas, sempre
bem-sucedidas, de contrariarem o equilíbrio instável dos corpos assentes em
patinhas muito finas para pousarem, contra ventos e outras ameaças, exactamente
onde desejam. Quando fala, quase nos engana. Faz umas pausas de arranque que
nos levam a supor que as palavras se vão começar a enrolar para depois serem
substituídas por outras mais certeiras. Mas quando a ouvimos logo percebemos
que tudo se deve ao recuo da voz perante o pensamento e que a hesitação que
testemunhámos é apenas o tempo de uma sincronia muito própria, já que as frases
surgem límpidas, vestidas por uma musicalidade singular, por uma espécie rara
de cristais. Viaja, a nosso lado, por tempos antigos e por outros mais
modernos, como se as leituras que faz fossem os bordões apropriados, e sempre à
mão, para desenhar o iluminado rumo do trajecto. A bagagem, habitada maioritariamente
por filósofos, poetas e artistas plásticos, parece pesada, mas a Maria
Filomena, quando a desmancha, transforma as recordações e os saberes em flocos
de nuvens, delicados, leves. Fica-nos a ideia de que, sem mesmo se dar conta,
tudo o que diz foi soprado por uma brisa vinda de um longe polvilhado de
enredos, tramas de seduzir até os mais desatentos. Custou-me acabar a conversa,
tantos foram os baús por abrir! Como se tivéssemos sentido, ambas, o pudor de
avançar mais, o pudor de contar o «resto», seja a quem for!
MJS – Maria Filomena,
diga-me quem é.
MFM- Acho que só gostaria
de dizer uma coisa, que sou arisca.
MJS – Não me dá grandes
pistas, assim… Fico a saber que não lhe é nada fácil abrir-se aos outros!
MFM – Sim, sim. Nunca
tive confidentes, não seria capaz.
MJS – Nem teve um diário?
MFM – Em miúda, como
quase todas as raparigas, escrevia para um caderno. Sem qualquer disciplina.
Mais tarde, continuei a escrever mas, embora com data, não era bem um diário,
eram mais registos de impressões, apreciações de coisas que se estavam a
passar, algumas pequenas inquietações ou grande, conforme…
MJS – Quando diz «mais
tarde», é já na idade adulta?
MFM – Adulta, mas ainda
perto da adolescência. Teria vinte e poucos anos.
MJS – Acha que cresceu
tarde?
MFM – Se cresci tarde?
Não, não acho que tenha crescido tarde. Quando era muito nova, achava que
morrer depois dos vinte anos era uma infâmia. Portanto, está a ver, não se isto
quer dizer que se cresceu muito, se pouco. Depois, quando passei os vinte, não
sei se dei logo por isso, que tinha passado os vinte, acho que dei… mas devo
ter-me esquecido e agora olho para essa minha ideia com alguma atenção, com um
pouco de susto e, até, uma certa incompreensão. Na altura achava que podermos
viver muito era uma espécie de infidelidade a certas coisas que se passam
connosco, era um abuso.
MJS – Havia em si uma
relação com o sagrado’
MFM – Isso havia. Tive
uma educação religiosa muito estrita, mas houve também a perda da crença e o
sentido do religioso manteve-se na expectativa de que haja, talvez, uma ligação
parental entre as coisas, mesmo que a não saibamos dizer ou justificar, mas
isso era acompanhado por um cepticismo assustador. Tenho a consciência de que
essa ideia tinha mais a ver com um olhar muito crítico, quase inclemente, sobre
a adaptação.
MJS – Daí o ser arisca…
MFM – Pois!
MJS – Insisto – essa
autocaracterização não quererá também dizer que a surpresa da vida lhe traz
grande incomodidade?
MFM – Acho que não. É um
sentimento, que vem da infância, de não poder ser «apanhada». Não é bem
resistir à surpresa da vida, é mais não querer ser agarrada, como um animal que
foge.
MJS – E agora vou eu
fugir para o terreno onde muito me interessa ouvi-la – o da filosofia. Soube
cedo que queria estudar Filosofia?
MFM – Soube cedo, apesar
de não saber bem o que era exactamente filosofia. Sabia que não queria estudar
ciências, apesar de as ciências me atraírem e de nem sequer ter sido má aluna.
Há nas ciências coisas que me interessam muito, mas sabia que não podia
investigar a ciência, porque a ciência tem que pôr entre parênteses a linguagem
que nós falamos e isso é uma condição que não consigo cumprir de nenhuma
maneira.
MJS – Explique-me melhor
esse conflito entre a ciência e a linguagem que falamos.
MFM – A língua materna
fica entre parênteses. A ciência tende a constituir-se numa linguagem própria
e, quando não consegue, tende a encontrar uma linguagem comum, qualquer que ela
seja. Uma linguagem formularia, ou internacional, ou mesmo inventada, onde se
pode escavar pouco. Pode até ser muito elaborada, mas não se pode escavar, não
há metáforas em matemática, não há as minas que a linguagem transporta consigo,
os palácios da memória, porque os objectos correspondem aos símbolos
inventados. Essa limpidez arquitectónica (parece divina) é o sonho de qualquer
outra ciência, o de chegar a ser matemática. Na altura, eu não tinha
consciência disto que acabei de lhe dizer, mas era isso já o que me inquietava,
e a filosofia, ou o que me levava até à filosofia, era eu não saber o que era.
Não sabendo ainda o que era a filosofia, é estranho não me ter desviado, não
ter arrepiado caminho, por exemplo, para a literatura, de que tanto gostava.
Não podemos nunca estar certos de poder explicar a alguém, com alguma
tranquilidade, o que é a filosofia, isso continua a ser um desafio fascinante.
Tem tudo a ver com uma relação, que eu via na filosofia, com o segredo, com o
mistério, com o enigma (ainda que o enigma também apareça na ciência, mas o
mistério, falando-se embora nele, na ciência não aparece tanto). Há qualquer
coisa deste género na ciência: há uma «coisa» que eu não sei, mas hei-de chegar
a saber! E, na filosofia, dir-se-ia assim: há uma «coisa» que eu não sei e vou
estar sempre nesta situação! Não é que essa «coisa» se desloque, como na
ciência, nós é que nos deslocamos e a «coisa» desloca-se ao mesmo tempo. Para
mim, esse é o grande mistério, o da expectativa que não pode ser preenchida de
modo nenhum. Do meu ponto de vista, que sou céptica. É um paradoxo, não é? Ter
uma expectativa e, ao mesmo tempo, ter uma certeza que não tem nenhum
fundamento a não ser este saber de que, por exemplo, nunca poderei satisfazer a
sede de justiça, ou nunca poderei satisfazer a angústia da morte. Estas e
outras questões não constituem nenhuma prova para o cepticismo, mas são boas
pedras-de-toque para lá se chegar.
MJS – De algum modo, por
aquilo que me disse, acho que a Maria Filomena encontrou na Filosofia a
disciplina par da sua natureza, já que se trata de um território também ele
muito arisco. Conte-me agora como é que foi a aprendizagem.
MFM – Fiz o curso na
Faculdade de Letras de Lisboa. Foi quase sempre uma grande desilusão, do ponto
de vista do que me era ensinado. Era como se estivesse num liceu, embora
melhor, mais vasto. Não foi uma passagem descontínua para um plano onde podia
encontrar aquilo que procurava, mas talvez fosse ingenuidade minha, uma
esperança vã, a de querer encontrar numa instituição de ensino aquilo de que
andava anteriormente à procura. Não podemos ter essa ilusão. Alguns professores
ajudaram-me a aproximar-me um pouco mais do que procurava, é verdade, como é o
caso do professor Oswaldo Market. Não que as disciplinas que ele ensinava
tivessem a ver com o mistério, mas tinham seguramente a ver com o enigma.
Ensinou-me uma experiência fundamental, a de perceber que antes de mim já
outros tinham vivido as questões que se me punham. O que dá uma certa
tranquilidade e, ao mesmo tempo, é causa de um grande sofrimento. O professor
Market deu-me a saber que havia uma coisa, muito bem iluminada por ele, que é
uma pertença comum e que eu podia ter acesso a essa pertença. Ele tinha uma
arte de converter o objecto do seu estudo e das suas aulas no termo de um
inquérito que, às vezes, parecia uma história policial: havia um enigma para
resolver e tinha de se encontrar um fio e nós percebíamos que havia toda a
lógica no fio e na sua procura. Esse mesmo modelo era por ele seguido nas
conferências, sempre apaixonantes.
MJS – Como é que foi o
seu encontro com os gregos?
MFM – É engraçado que o meu
encontro com os gregos deu-se, não nas aulas de Filosofia Antiga, mas,
estranhamente, nalgumas das primeiras aulas de Filosofia Medieval. Quando o
padre Cerqueira perguntou quais eram os nossos autores favoritos, respondi –
Heraclito. Mas foi só mais tarde, pela mão de Giorgio Colli, que percebi bem a
utilidade dos ensinamentos do pensador de Éfeso e o fundamento da minha grande
admiração. O que, na altura da resposta ao padre Cerqueira, eu admirava em
Heraclito era já a sua obscuridade. Colli, para além de ter traduzido todos os
fragmentos de Heraclito, de fontes directas, indirectas, testemunhos de toda a
ordem, escreveu textos fundantes sobre o seu pensamento. Foi ele o primeiro a
ensinar-me (o que eu nunca tinha aprendido na Faculdade!) o verdadeiro sentido
daquela que era uma das razões do fascínio pela obscuridade de Heraclito. Antes
de ler Colli, essa razão era uma razão falsa.
MJS – Uma razão falsa?
MFM – Vou tentar
explicar. Lembra-se do fragmento de Heraclito em que ele fala sobre a harmonia
dos contrários, como a que existe entre o arco e a lira? Na altura não percebi
onde é que estava a contradição entre o arco e a lira. E não houve explicação
por parte do professor de Filosofia Antiga. Creio que não sabia, como eu também
não sabia, o que é que queria dizer o arco e a lira. Imaginei, muito
ignorantemente, que a lira se tocaria, naqueles tempos, com um arco. Ora a lira
toca-se, sempre se tocou, evidentemente, com as mãos. E sabe qual é a
contradição? A lira e o arco são dois símbolos de Apolo. O arco é o arco da
guerra. Os gregos achavam que era Apolo que tinha introduzido o arco, que é uma
arma asiática, não é uma arma grega, e é uma arma assustadora, porque é a
primeira que mata ao longe. Aquele que quer matar já não fere directamente com
as suas mãos, mata de longe. A lira também é um símbolo apolíneo. Apolo tem
essa particularidade de ser o deus musical por excelência e ser também o mais
cruel dos deuses que os gregos conheceram. A crueldade de Apolo é indissociável
da expressão harmónica que ele é. Trata-se de um modo de ver a vida. Mais
interessante ainda é saber que, em épocas muito arcaicas, a lira e o arco eram
feitos a partir da mesma matéria, os cornos de um caprino que, conforme a
inclinação, se transformavam num arco ou numa lira. Heraclito sabia isto, mas
não o dizia, porque ele não dizia quase nada do que sabia. Quem compreendia,
compreendia. É esse o aspecto da obscuridade heraclitiana, não a marca do
absurdo, mas a tonalidade de uma experiência que só pode ser reconhecida por
quem a conhece. Um seu contemporâneo, grego, se fosse culto, deveria saber como
é que o arco e a lira eram feitos nos tempos antigos.
MJS – Heraclito continua
a ser, dos filósofos pré-socráticos, o seu eleito?
MFM – Continua, embora, ainda
por causa de Colli e também de Hoelderlin, esteja muito empenhada em conhecer
melhor Empédocles. Mas Heraclito continua a ser um foco natural de atracção,
porque não há ninguém que conhecemos em filosofia a quem a marca da obscuridade
e do insondável calhe melhor. Colli qualifica-o, entre todos os filósofos que
apresenta, como aquele que sofreu o «pathos» do obscuro. Esse «pathos» do
obscuro é uma experiência de Heraclito, experiência que também tem a ver com
uma espécie de inclemência para com os seus contemporâneos, de desprezo e de
grande sentido crítico em relação à maioria. Mas, ao mesmo tempo, ele sabe que
qualquer ser humano tem acesso ao que mais importa, a fonte da vida, os limites
da alma. Foi ele quem melhor compreendeu, ou melhor, nos deu a compreender, o
modo como os gregos viam a infância. Trata-se de um outro fragmento, em que nos
fala da criança que joga aos dados, é esta a apresentação da vida para o
filósofo – a realeza da criança! A realeza da criança é a leveza, a suspensão,
a harmonia que existe nela antes do trabalho da educação. Trabalho sempre
exercido no sentido da adaptação ao real.
MJS – Passemos agora à
idade moderna. O seu encantamento por Nietzsche também cresceu por via de
Giorgio Colli?
MFM – Sim. Conhecia Colli
como editor de Nietzsche, mas nunca o tinha lido. Fui um dia assistir, na
Assírio e Alvim, a uma conferência sobre Maria Zambrano. Jesús Moreno, o
conferencista, falou de Nietzsche e das leituras que ela dele fizera, muito
importantes para o seu pensamento e falou também de Giorgio Colli, ainda mais
determinante para a obra de Maria Zambrano. Fui logo ler Dopo Nietzsche e não parei mais de ler tudo o que escreveu, que é
uma obra rara, em todos os sentidos. É uma obra de alguém que está muito perto
dos primeiros filósofos, em particular dos pré-socráticos, e ainda mais em
particular de Heraclito. Não encontramos em Colli nenhuma nota de rodapé (a não
ser na sua primeira obra, A Natureza
Gosta de Esconder-se, e por razões argumentativas, no quadro da sua
carreira académica) e é raro que ele cite o texto que está a referir do autor,
porque ele não escreve para divulgar, nem para ser divulgado. Colli crê que a
filosofia é uma actividade contemplativa (isso eu já sabia, mas foi bom ver
confirmado!) e crê também que a escrita dessa actividade contemplativa deve ter
sempre o último lugar.
MJS – O último lugar?
Como é que dá as suas aulas?
MFM – É curioso, ao
princípio escrevia as aulas. Mas não gostava nada de ler o que tinha escrito ou
do esforço que fazia para decorar. Agora não as escrevo. Também não escrevo as
conferências. Deve-se isto a uma disciplina muito grande, que se chama
concentração.
MJS – Nas conferências
percebo melhor, agora nas aulas… como é que reage ás interrupções,
imprevisíveis, dos alunos? Desviam-na do fio condutor?
MFM – Pode-se perder o
fio à meada, é verdade, mas é raro isso acontecer-me. As perguntas feitas pelos
alunos implicam outra entrega, outra concentração. Depois regressa-se ao fio.
No fim do ano, consigo reconstituir todas as aulas que dei, esqueço-me às vezes
é das datas e, para fazer os sumários, chego a pedir os apontamentos dos alunos
para saber exactamente em que dia dei isto ou aquilo.
MJS – O esforço terrível
de escrever uma tese de doutoramento já lá vai… Qual foi o tema?
MFM – Foi Goethe e os
seus textos sobre as plantas, as cores, os animais, a meteorologia… E ainda
alguns textos teóricos sobre isso, ou seja, os textos sobre as plantas e os
textos que ele escreveu sobre o que escreveu sobre as plantas, isto é, sobre a
Natureza, sobre as formas e sobre o modelo que a Natureza é para o surgimento
das formas artísticas.
MJS - Porquê Goethe?
MFM – Ah, isso também tem
um pai, neste caso, Claude Lévi-Strauss, de quem sempre gostei muito. Quando
era professora de liceu, já dava a ler aos meus alunos La Pensée Sauvage , sobretudo
por causa daquele conceito da lógica primitiva e também da ideia da arte ser
sempre miniatural. No Homem Nu há um finale, uma espécie de testamento onde
Lévi- -Strauss no fundo justifica as
suas teses e o estudo da antropologia e do estruturalismo. Aí, além de falar de
Bach e de Ravel, fala de três autores e de três obras que foram muito
importantes para ele: Duerer e os seus textos sobre as proporções dos corpos e
dos rostos; On Growth and Form, de um
grande matemático e biólogo inglês, D’Arcy Thompson; A Metamorfose das Plantas,
de Goethe. Fui ler as três e decidi fazer a tese sobre A Metamorfose.
MJS – Quer contar-me A Metamorfose das Plantas e a razão do
seu interesse?
MFM – O título, devo
dizer-lhe, parece prometer mais do que a obra. Acho que onde existe a palavra
«metamorfose» há sempre, pelo menos para mim, a expectativa de qualquer coisa
de enigmático, e neste livro de Goethe não há isso, não existem apresentações
ou soluções de enigmas. A obra é uma tentativa de compreender o crescimento das
plantas. Não de todas as plantas, mas das plantas que crescem e florescem
anualmente. É um grupo reduzido de plantas, mas são plantas maravilhosas que
florescem todos os anos. Como a tulipa, por exemplo. Hei-de mostrar-lhe umas
polaróides de umas tulipas especiais, tulipas goethianas por excelência. São
aquelas em que a corola, a folha da corola, aquilo a que chamamos uma pétala,
está a crescer numa folha caulinar, isto é, uma folha caulinar está quase a
transformar-se numa corola. E Goethe desenhou-a! E ensina-nos, como de resto os
botânicos também o fazem, que o crescimento de uma planta é como se fosse uma
reprodução e a reprodução é como se fosse um crescimento. São duas versões, uma
contraída, outra expandida. Essas são as duas forças de que ele fala – expansão
e contracção. E é muito interessante ver como ele analisou, através dessas duas
forças, o crescimento das plantas, desde as folhas do embrião até ao fruto.
Cada momento do crescimento é uma metamorfose da folha, em todo o ponto do
crescimento a planta é uma folha! Sempre que ele encontrava casos «anómalos»,
como por exemplo o caso das plantas que têm florescimentos prolíferos, ficava
feliz, porque esses casos comprovavam melhor a acção das duas forças. Goethe
sabia que a Natureza não errava, com esses casos a Natureza estava apenas a
mostrar melhor o princípio da lei.
MJS – O tema parece-me,
desculpe que lhe diga, um pouco extravagante no contexto de uma tese de
Filosofia. Onde é que está a ponte?
MFM – A ponte situa-se
exactamente no que está implicado nessa compreensão das plantas, ou no modo
como ele via as pedras, ou no estudo dos ossos, que até o levou a descobrir,
contrariando a tese da época, que havia no homem o osso intermaxilar… A
constante observação e a minúcia aplicada a todas as coisas que há na terra são
reveladores do seu grande amor pela terra. Conhece a história do crânio de
Schiller? Schiller, dez anos mais novo que Goethe, sempre o quis conhecer. Mas
Goethe não estava interessado em conhecer Schiller , porque este representava tudo
aquilo que Goethe começava a abominar na Alemanha – o sentimentalismo e a
severidade idealista, purificativa. Encontraram-se um dia, no ano de 1794, à
saída de uma conferência sobre a Natureza, discutiram alguns pontos do que
tinham acabado de ouvir e Goethe convidou Schiller a ir até sua casa, onde lhe
falou da Metamorfose das Plantas. A
um dado momento, para lhe explicar que tinha encontrado, num jardim de Palermo,
a «planta originária», a matriz de todas as plantas, aquela de que andava à
procura, Goethe desenhou a planta. Schiller, como bom kantiano, olhou para o
desenho e disse que se a «planta originária» era uma «ideia», aquele desenho
era uma «experiência». A antiga irritação regressou à conversa mas, no fim,
Goethe reconheceu que nenhum deles era vencedor, nem se declarava vencido. E
ficaram amigos. Quando Schiller morreu, cedo em 1805, não lhe fizeram nenhum
mausoléu, nenhuma homenagem especial. Cerca de 20 anos mais tarde decidiram
fazer um monumento funerário que honrasse a memória de Schiller e foram à
procura dos seus restos. Mas os restos de Schiller estavam misturados com
muitos outros. Separaram vários crânios e consta que Goethe acompanhou os
anatomistas nessa pesquisa e que foi ele a decidir qual era o crânio. Como
Schiller tinha uma cabeça e uma testa muito belas, com uma forma muito
especial, e Goethe era um observador atentíssimo, conseguiu, com esses dados,
localizá-lo. Fez depois um poema que, na tradução de Paulo Quintela, ainda se
chama Ao Crânio de Schiller, embora nas
versões alemãs mais recentes tenha sido retirado esse título. O poema é
lindíssimo e tem a ver, mais uma vez, com essa compreensão da ligação entre os
ossos e a vida, o corpo e o espírito, o visível sobre todas as suas formas e o
espírito desse visível. Goethe não tinha muita relação com o invisível, tinha
relação era com o espírito do visível, que é uma coisa completamente diferente.
Isto para mim foi decisivo, sabe? E estou em crer que ele tem razão, é mesmo o
espírito do visível que procuramos. Alguns dos pensadores de que estou mais
próxima, como Walter Benjamin e Wittgenstein, provêm desta nascente.
MJS – O que é que
distingue o «invisível» do «espírito do visível»?
MFM – É que o invisível é
muitas vezes considerado como aquilo que está atrás do visível, ou que está
escondido pelo visível, como se o visível tivesse de carregar com o ónus do
peso, da degradação, da falta de transparência. Mas porquê? Se no visível é que
há transparência, é que há leveza! A ideia de Goethe é que atrás do visível não
há nada, no visível é que está tudo. A ideia é a de que escavando no ser se
descobre qualquer coisa. Se o abrirmos tem duas leituras – pensar que a
obscuridade das nossas entranhas vale mais do que a nossa visibilidade, ou
pensar, como Goethe pensa, que há uma relação íntima entre ambas, que são
inseparáveis, mas as entranhas não são mais importantes do que aquilo que é
visível no corpo. Goethe, por exemplo, nunca estudou as raízes das plantas,
estudou foi o caule e as folhas. O que ele mais temia era o caos, o informe,
para a ausência de cor. A raiz é, evidentemente, qualquer coisa de decisivo
para a vida da planta, mas não diz respeito à metamorfose. A metamorfose tem
sempre a ver com a visibilidade, não tem a ver com as forças obscuras. Claro
que há forças para o crescimento, mas essas forças são manifestas. As raízes
são os bons mediadores para a visibilidade, porque recolhem a água, os sais
minerais… mas, se não houver sol, se não houver a transmutação que o sol
implica, nada feito. Goethe era o homem da superfície da terra. Também
escavava, mas sempre para trazer á luz, não por amor às entranhas. Eu não
conseguiria acompanhá-lo em tudo o que fez, o estudo dos ossos por exemplo. Bem
sei que naquela época era habitual ter-se esqueletos em casa, para observação e
estudo. Nós, hoje em dia, consideramos intocável um esqueleto, não vemos a
passagem da estrutura à forma viva. Goethe conhecia muito bem as forças do
fundo da vida, temia-as, mas não as reconhecia como matéria de estudo. Basta
lermos o Fausto para percebermos como
as conhecia bem! Para ele, o que era para ser estudado era o que podia
confirmar o sentimento de podermos constituir uma unidade com o todo. Era a sua
escolha.
MJS – Acho que fiquei a
perceber o sentido da sua tese e agradeço-lhe o modo como me guiou por tais
caminhos, tornando-os menos obscuros. Apesar do pouco tempo que nos resta, não
resisto a pedir-lhe que me fale de Nietzsche.
MFM – É um autor muito,
muito difícil. Comecei por esquecer o que li dele pela primeira vez. E porquê?
Porque não só não entendia muita coisa que estava a ler, como aquilo que eu
entendia não me agradava nada. Resistia. Havia um aspecto a que eu não
resistia, que era o aspecto crítico, o aspecto avassalador relativo à
adaptação, á moral e á política instituídas. Mas depois havia um limiar que ele
ultrapassava e que era, por um lado, muito atraente, muito escandaloso, muito
bem-vindo sob certos aspectos e muito mal vindo sob outros, porque tocava em
sentimentos de vida que eu achava que não podiam ser maltratados. Com Colli,
aprendi que o pior que aconteceu a Nietzsche foi os seus comentadores e os seus
entusiastas, tão susceptíveis de crítica como aqueles que Nietzsche criticava.
Nietzsche praticamente nunca viveu. Passou todo o tempo a ler e a escrever e
tinha um desprezo bem fundado em relação à Academia, à Universidade e aos
poderes instituídos do Estado e da moral. Era um homem que estava mal com a sua
época. Na sua primeira obra, há nele ainda um ímpeto de optimismo, a esperança
de que é possível restaurar uma experiência de vida, a experiência grega. A
partir daí, vai saber que a vida grega não se restaura e, sobretudo, não se
restaura aquilo que ele quer recuperar da vida grega e que é a alegria…
MJS – Acha que a poesia e
a filosofia vão a par ou a poesia está mais à frente da filosofia?
MFM – Está mais à frente,
está. Penso duas coisas sobre a filosofia, duas coisas que não são
conciliáveis, e uma delas só a penso mais recentemente. Uma, que sempre pensei,
é que a filosofia é uma actividade contemplativa. A poesia, não, a poesia é
actividade. Simplesmente. O que eu pensava antes é que a filosofia era um
género literário e agora, embora com hesitações, acho que a filosofia é uma
actividade contemplativa que se converteu em género literário e que tende a
superar-se enquanto género literário. No fundo, a tensão da filosofia é deixar
a escrita, é deixar o género literário. Essa não é a tensão da poesia. A
filosofia é uma actividade estranhíssima, porque por um lado quer o contacto
íntimo com o que há e, por outro, sabe que só experimenta esse contacto através
da contemplação. E a contemplação exige, por ordem natural de si mesma,
separação. Essa é a matriz da filosofia. A conversão em género literário foi
feita por Platão e nunca mais ninguém escreveu como Platão, nem escreveu sob
aquele modelo de género literário, que é um ajuste de contas com a poesia.
Platão pensava que estava a pagar uma dívida à poesia e que a dívida ficava
assim saldada. O pagamento da dívida está na decisão de expulsar os poetas, mas
depois de os ter reverenciado e d lhes ter coroado a cabeça. O ajuste de contas
de Platão é escrever como escreveu, e isso foi a conversão da filosofia em
género literário.
MJS – Poder-se-ia dizer
que poesia e filosofia desejam ambas nomear o ser e a coisa?
MFM – Eu diria assim – a
poesia deseja nomear o ser e a filosofia também, mas a filosofia introduz,
entre a nomeação do ser ou da coisa, o sistema conceptual e argumentativo. Isso
não existe em poesia, embora a poesia trabalhe com conceitos, já que qualquer
palavra tende a ser conceito. A poesia não é música pura, nem é procura do
conceito, é uma ligação, difícil de estabelecer, em termos teóricos, entre a
aproximação máxima à musicalidade de uma língua e a intimação mais íntima à
compreensão.
MJS – Dê-me uma palavra
de eleição.
MFM – Leveza.
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