18-12-2005
Bernardo
Sassetti
O
auditório da Culturgeste estava cheio, a pedir mais lugares para os que não
tinham conseguido entrar. Quando as luzes se apagaram, o ecrã do fundo do palco
começou a ser habitado por um puzzle
de sombras, puras abstracções de fotografias, projectadas como pontos de fuga
para o nosso olhar. Eram cintilações despojadas, difusas numa névoa a preto e
branco, dando a ver através da vidraça de uma janela os ramos de uma árvore, ou
uma ruela gelada, por onde vultos (Bernardo e uns seus companheiros de
estrada?) caminham ao longe, de costas, para o longe de umas tantas casas, ou
ainda… Pareceu-me então que todos nós, no conforto das nossas cadeiras, nos
pusemos à escuta do sopro frio de um vento que devia estar a varrer aquela rua,
aqueles ramos, aqueles casacos e os corpos que cobriam, no instante em que a
câmara os fixou. Pareceu-me isso mas o que sei é que se fez silêncio e que só
quando os músicos ocuparam os seus lugares em cena é que as nossas palmas nos
reaqueceram. A seguir a esse silêncio e a essas primeiras palmas fez-se música
e a plateia «estremeceuzinho», como prodigiosamente Guimarães Rosa nos ensinou
a dizer. A música que se ouviu foi também feita de silêncios. Longos, alguns.
Convocados por uma poderosa batuta invisível, largámos os tiques habituais das
salas de concerto – ninguém tossiu, ninguém desembrulhou o rebuçado calmante,
ninguém se mexeu nos assentos. O que aconteceu foi que nos integrámos, de
respiração suspensa, na voz do concerto, mudos quando as teclas e as cordas e
as percussões se calavam, vibrando com os acordes dos instrumentos quando eles
falavam alto e forte. Foi na apresentação de Ascent, último e belo disco do (duplo) Trio Bernardo Sassetti, ou
melhor do Bernardo Sassetti Trio2. Inesquecível. Quando uma entrevista começa
por perguntar quem se é, denuncia logo a curiosidade pelo trilho dos passos de
quem está diante de nós. Quantos mais anos tiver a pessoa entrevistada, mais
longa será, em princípio, essa viagem à memória de quem somos, donde viemos, o
que fizemos para chegar até aqui. Se for jovem, como o Bernardo, corre-se o
risco de ouvirmos o relato de um percurso naturalmente mais curto, ainda em
dificuldades de balanço. Mas a intensidade e a precisão com que ele se contou,
para além de surpreendente, foi reveladora de uma pessoa que cedo descobriu que
tinha de estar na vida a tempo inteiro, sem distracções sobre o sentido que era
imperativo dar-lhe. Descobriu, no cedo do seu tempo pessoal, que a música, e
mais especificamente esse território de liberdade extrema que é o jazz, seria a
pauta que moldaria esse sentido. Pauta exigente, que não admite desrespeitos.
Entregou-se-lhe sem reservas e, em troca, recebeu dela um dom valioso – a tal
batuta poderosa e invisível que, numa sala de concerto ou em casa a ouvirmos um
CD, nos guia até quase à fusão com a sua música. Com a música.
MJS
– Bernardo, diz-me quem és.
BS-
Que difícil! Sou um terrestre, muitas vezes feliz, mas um terrestre que caminha
de uma forma muito aérea, muito suspensa, à procura de qualquer coisa,
sobretudo na música, que ainda não sabe muito bem o que é. E isso inquieta-me o
espírito. Sempre. Vivo com esta inquietação vinte e quatro horas por dia.
MJS-
Vives com esse «sobretudo na música» desde quando?
BS-
A inquietação que referi tem crescido cá dentro sobretudo desde um período em
que não gravei nada com o meu nome, um jejum de seis anos, a seguir à saída do Mundos, o meu segundo disco. Mas o viver
a música seriamente vem muito de trás, embora não tivesse logo percebido o que
fazer seriamente dela e com ela.
MJS
– A tua escolaridade curricular foi sempre acompanhada de estudos de música e
de piano?
BS-
Comecei, aos dez anos, com estudos de música clássica, acompanhado por dois
professores, privados. Nunca frequentei uma escola de música. Cheguei a uma
certa altura, sobretudo com o professor António Menéres Barbosa, em que tive
que optar – ou era a música improvisada, ou era a música clássica. Ele
entregava-me peças para estudar e o que eu fazia era dar-lhes uma volta e
interpretá-las à minha maneira, às vezes de uma forma extrema. Fui sempre muito
inquieto, até irreverente. Nunca consegui, desde a adolescência, logo na
escola, viver bem com demasiadas regras. Era a minha forma de ser e isso
espelhou-se na música e na sua aprendizagem. O meu irmão Francisco era o meu
ídolo. Nascido seis anos antes de mim, também estudava piano e era a minha
referência. Foi assim até eu perceber que a minha música não era aquela música
escrita que ele estudava e tocava bem melhor do que eu. Precisava de liberdade
para conseguir viver no meio da música. Descobri o jazz, aos doze anos, ao
ouvir Bill Evans numa transmissão de RTP (no «Jazz Magazine») de um concerto
que ele deu em Lisboa, pouco antes de morrer, no Teatro São Carlos, imagine-se.
Fiquei fascinado. E acabei finalmente por optar – foi a primeira grande mudança
na minha vida. Pus-me a estudar jazz muito seriamente, o que era muitíssimo
complicado na altura em Portugal. Teve também grande importância o facto de ir
viver para França durante um ano. O meu pai foi dar um curso sobre Energia na
Universidade de Grenoble, eu tinha quinze anos e como sou o último de oito
irmãos, o mais novo da família, acompanhei os meus pais. Pensei que aquele ano
em França ia ser difícil e que talvez me fizesse desistir da música. Quando
entrei na casa que tinha sido alugada e vi um piano na sala, como em Lisboa,
nem queria acreditar. Acabou por ser nessa estadia que efectivamente percebi o
que pequenas coisas postas à disposição de quem quer aprender e fazer música
podem ser determinantes. Descobri um clube-discoteca, de que me fiz sócio, o
que me dava a possibilidade de alugar três ou quatro discos por dia. Tinham
aparecido os CDs e, com uma aparelhagem simples, comecei a gravá-los em casa. A
secção de jazz desse clube era extraordinária e gravei centenas de cassettes.
Passava o tempo (que me sobrava das aulas de um curso intensivo de francês para
estudantes estrangeiros) a ouvir discos na tal discoteca, a escolher os que
queria gravar e, com o piano ao lado, a experimentar improvisações. A obsessão
pelo jazz vem daí. Devia ser considerado um adolescente diferente, não
especial, mas diferente, já que em vez de ouvir os sons da época passava as
horas ligado a Duke Ellington e a Thelonius Monk. Quando regressei, em 1986,
com dezasseis anos, já sabia que tinha um interesse interior profundo pelo
jazz. Sabia também que esse interesse não era partilhável com muitas pessoas, o
que é desconfortável.
MJS
– O cumprimento de outros estudos, a seguir ao 12º ano, levou-te para que
áreas?
BS-
Não sabia muito bem o que queria fazer, mas tinha na ideia ir para Relações
Internacionais. Essa ideia durou só uma semana, o tempo de tomar a decisão de
me dedicar exclusivamente à música. No fim do liceu tive o primeiro convite
para ir tocar fora, a Barcelona. Foi aí que se deu a segunda grande mudança na
minha vida, quando percebi que existia um meio muito rico de músicos com a
minha idade a aprender e a fazer música. Pessoas com quem eu tinha imenso em
comum. A partir da experiência que vivi nesse Festival, e, 1989, resolvi
«pôr-me a caminho».
MJS
– Deixaste para trás o projecto das Relações Internacionais?
BS-
Completamente. Nem cheguei a acabar o ensino secundário. A minha escolaridade
ficou incompleta, legalmente tenho apenas o 9º ano, porque chumbei a História
no 10º. Não havia História do Jazz! A decisão de abandonar os estudos foi
motivo de alguma preocupação em casa. Apostar tudo na música de jazz não
parecia muito sensato para assegurar um futuro com credibilidade…
MJS-
Não percebi como é que o tal Festival de Barcelona te descobriu e convidou. Já
tocavas em clubes?
BS-
Falta explicar isso. Pouco depois da revelação do Bill Evans, conheci os irmãos
Moreira e o seu Moreiras Jazztet. Foi com eles que iniciei a minha nova
aprendizagem da música. Somos primos em terceiro grau e eles adoptaram-me como
quinto elemento, partilhando comigo todas as suas experiências. O Miguel era o
pianista mas, a partir do momento em que chegou à Universidade para estudar
Astro-Física, teve que optar pelas esferas celestes. O quarteto deles, na
época, era formado pelo Bernardo (contrabaixo), o Miguel (piano), o Pedro
(saxofone tenor) e o João (trompete). Passei a estar com eles diariamente,
tocávamos horas a fio e o João chegou mesmo a ir visitar-me a Grenoble. Foi com
o Moreiras Jazztet, grupo onde eu já tocava, que fui ao Certame Ibérico de
Orquestras de Jazz, em Barcelona, representar Portugal. Num espaço de três
dias, com um calor insuportável, conhecemos uma série de músicos absolutamente
notáveis. Um deles é até hoje como um grande irmão da música, tal a empatia que
temos. Chama-se Perico Sanbeat, é valenciano e, para mim, um dos maiores
saxofonistas do mundo. Ter tido a possibilidade de ver e sentir, junto de
muitos dos músicos com quem nos cruzámos nesse festival, que a tal obsessão
pelo jazz não se passava só comigo, deu-me um enorme ânimo. Mais tarde voltei a
tocar em Barcelona, a convite do Zé Eduardo que, depois de ter criado cá a
Escola do Hot Clube, foi viver para Barcelona e aí desenvolveu o seu trabalho
no Taller de Musics, por onde o
Perico e todos os participantes do CD Salssetti
passaram. Propôs-nos que formássemos um Trio, baseado em Barcelona, para
rodarmos com solistas americanos. É nesse momento que se dá a terceira grande
mudança na minha vida, ao perceber que o jazz não é um trabalho individualista
e solitário, mas um trabalho de entrega, ao vivo, sobretudo com solistas e
músicos diferentes. Acho que é só a partir da compreensão e interiorização
desta ideia que se começa a criar uma certa bagagem dentro do meio, difícil, do
jazz.
MJS
– Há pouco referiste o CD Salssetti,
o primeiro disco com o título fundeado no teu nome. Conta-me mais.
BS
– Gravei-o em 1992, tinha vinte e três anos. A editora foi a Groove-Movieplay,
talvez a primeira editora de jazz portuguesa. Éramos seis músicos – o Perico,
os irmãos Rossy (o Mário e o Jordi), o Bob Sands e o José Salgueiro,
percussionista português e o homem mais criativo que alguma vez conheci. Houve
ainda a participação especial de um músico cubano, a residir nos Estados
Unidos, Paquito D’Rivera (clarinete e saxofone alto). Como sentíamos uma grande
atracção pelos ritmos afro-cubanos, nomeadamente a salsa, o Paquito propôs esse
título simbiótico e revelador – Salssetti
(também a alcunha que me arranjou!), que não foi suficiente para atrair
muitos ouvintes. Nessa época eu viajava muito entre Barcelona e o resto da
Europa, até me fixar por algum tempo em Inglaterra, não sem antes ter tido que
fazer um ano de serviço militar em Lisboa. Foi um ano perdido, que não serviu
para nada, a não ser para reforçar um calo enorme que tenho na junção entre o
polegar e o indicador… Fui «caixa», durante oito meses, na Banda da Região
Militar de Lisboa. Tocava tarola e percussão, o que me fez muito bem, de um
ponto de vista rítmico. Tive que estudar, aprender a aplicar-me. Sofri bastante
nos quatro meses de recruta, mas o tempo da Banda foi hilariante, fora o ter
que acordar todos os dias às sete da manhã para ir fazer guardas-de-honra. O
momento de glória foi quando a Banda interpretou a «Suite Alentejana» do meu
tio-avô, Luís de Freitas Branco, comigo às castanholas.
MJS
– Largada a tarola, sentiste uma enorme vontade de sair de Lisboa e partiste de
imediato para longe. Para onde?
BS
– Fiz as malas, cheio de energia, em direcção a Londres. Fui à aventura e tive
a grande sorte da minha vida – conhecer os músicos certos, no momento certo.
Por uma razão quase insólita. No meio musical londrino da altura, 1992/93,
havia uma escassez enorme de pianistas de jazz. Não percebi bem porquê, mas era
assim. Tive, por isso, a oportunidade de tocar praticamente todos os dias, o
que me permitia, para além de algumas ajudas familiares nos meses piores, pagar
em leasing o meu piano. Deu-me um
prazer enorme poder tocar à noite em clubes, de manhã participar em sessões em
estúdio com músicos diferentes e, à tarde, fazer jam sessions, por aqui e por ali – em clubes, em bares, em casas
particulares. Aconteceu-me o mesmo quando me aventurei a ir até Nova Iorque. É
uma cidade que adoro, mas odiei o modo frio como lá se trabalha. Com o tal Trio
de Barcelona conheci muitos solistas norte-americanos que viviam em Nova
Iorque. Só que eles mudam radicalmente quando vêm à Europa e são outras pessoas
quando estão nos Estados Unidos. Na Europa, temos praticamente que fazer de baby-sitters, com tudo muito bem
«explicadinho»; em Nova Iorque, ignoram-nos quase totalmente. É uma experiência
estranha. Convidam-nos para lá irmos, mas depois, quando chegamos, têm mais em
que pensar. Tive alguns atritos, mesmo com músicos com quem já tinha tocado em
salas europeias e com quem me tinha entendido bem. Em Londres, terra de
cavalheiros, as coisas não se passaram assim.
MJS
– E em Portugal, no meio da família dos músicos de jazz, o que é que se passa?
BS
– É de facto uma família, os músicos revêem-se e apoiam-se dentro do meio.
Existem mais e melhores músicos – se tal for comparado à década de 80, quando
comecei. Mas, por incrível que possa parecer, existem também lobbies muito precisos dentro deste meio
absolutamente minoritário – os puristas, os avant-gardistas
e os… intermédios. Penso, no entanto, que se deviam criar mais oportunidades de
ligação entre a nova geração a emergir no jazz nacional e alguns músicos de
outros países, independentemente dos estilos musicais. Só assim pode crescer
esta família e este é um dever absoluto dos principais organizadores dos
festivais de jazz em Portugal. É um pouco desanimador saber que ainda se vive
muito com a ideia do «vá para fora e volte cá para dentro» para que os artistas
nacionais sejam bem aceites, mediatismo sintomático num país com apreciáveis
crises de confiança. Coisas boas e importantes: o Hot Clube, que foi para mim
como uma segunda casa. Actualmente não o frequento com a mesma regularidade.
Reconheço que a minha vida e a minha música mudaram, talvez por ter passado
onze intensos anos, de 1990 a 2001, a tocar à noite em tournées e em clubes de jazz. Agora, por exemplo, é de noite, em
casa, que componho. Como gosto cada vez mais de compor, eu próprio me afastei
um bocadinho dos clubes. A música que faço reflecte necessariamente esta
mudança que se deu em mim, já é uma música um pouco híbrida, tem tanto de jazz,
como não tem. Talvez pertença ao grupo dos intermédios!
MJS
– Explica-me melhor para eu perceber. O que te trouxe para o jazz foi a
profunda necessidade de liberdade na música e a consequente rejeição da pauta
escrita. Quando compões, escreves. Deixas espaços em branco na partitura para
«acontecer» o improviso?
BS
– Não será bem isso. Pergunto-me muitas vezes «o que é que se escreve no jazz»?
Escreve-se o leitmotiv, os chamados
«temas» que são, no fundo, uma espécie de fio condutor que vai permitir e
acolher o improviso. É da sua própria natureza suscitar a improvisação. Está lá
inscrito, não está escrito. É um processo diferente daquele que utilizo na
composição orquestral tradicional, ou na música para cinema, que tem menos
liberdade e é, naturalmente, mais pensado na sua forma.
MJS
– Regressemos às edições discográficas da tua música. O que é que veio a seguir
ao Salsetti?
BS
– Veio o Mundos, em 1996, com muitos
dos músicos do Salsetti, mais uns
tantos, como a Lucrécia, uma cantora cubana. Antes da gravação do disco e
quando o Paquito D’Rivera ficou a tomar conta da United Nations Orchestra ( uma
big jazz band), fundada pelo Dizzie
Gillespie, fui por ele convidado a integrar essa orquestra e a participar nuns
concertos pela Europa. Assinei, entretanto, um contrato por três anos com a
Polygram (agora Universal), saiu o Mundos
e aquela relação correu mal. A música que faço não se dá bem com a lógica de
uma multinacional que, onde aposta, tem que ver de imediato garantias de vendas
muito rápidas. Isso não aconteceu com o Mundos
e o contrato foi rescindido, com muito boa aceitação de ambas as partes. Foi
depois disso que estive seis anos sem gravar. Até 2001. Não sentia necessidade,
vivia bem com os concertos que dava, sobretudo fora de Portugal. Foi também
quando comecei a deixar aquele ritmo nocturno das actuações em clubes e a
dedicar-me mais seriamente à composição. Todos os dias da semana, até às cinco,
seis da manhã.
MJS
– Até que surge o ano de 2001. O que é que aconteceu em 2001?
BS
– Aconteceu a gravação do Nocturno, o
meu terceiro disco. Já lá vamos. Antes de 2001 aconteceram-me muitas coisas,
uma delas muito importante – a de ter sido agarrado por um outro fascínio, o do
cinema. Hoje faz parte de mim, é quase como uma actividade paralela da minha
carreira. Recebi um dia a encomenda da banda sonora para um filma de 1930, o Maria do Mar, de Leitão de Barros. O
gosto da composição para cinema nunca mais me largou. A encomenda desse
trabalho partiu primeiro da estação de telavisão ARTE, mas, depois de alguns
problemas contratuais com o canal, foi a Cinemateca Portuguesa que assegurou a
conclusão do projecto. Pelo meio desses anos dei várias voltas ao mundo em
concertos com um quinteto inglês, do trompetista Guy Barker e, a um dado
momento, gravámos um disco com a participação especial do Sting. O Anthony
Minghella ouviu o disco e disse - «Quero este quinteto no meu próximo filme».
Foi assim que participámos na rodagem do Talented
Mr. Ripley, em que tocámos cinco ou seis temas de jaz da banda sonora, da
autoria do Gabriel Yared. Estava-se em 1998/99. Participámos ainda na promoção
do filme em várias partes do mundo (Estados Unidos, Inglaterra, França,
Itália), com temas criados por nós a partir da experiência da rodagem, tocados
ao vivo. Foi uma jornada inacreditável. Não imaginava que houvesse orçamentos
daquela monta para acompanhar a saída de um filme. Achei tudo grotescamente
excessivo, com alguns pormenores patéticos. Só para se ter uma ideia, o custo
das viagens e do cattering para a
«promoção» de um filme de Hollywood é duas vezes superior ao orçamento para a
«produção» de todos os filmes portugueses num ano. No mínimo! É alucinante.
MJS
– Conseguiste aprender alguma coisa com esse envolvimento na grande máquina de
produção de Hollywood?
BS
– As condições dadas por Hollywood aos compositores e músicos são estupendas,
mas recorre-se muito à fórmula fácil, para induzir o sentimento nos
espectadores. Não suporto isso. Gosto de pensar na música de uma forma
abstracta, útil, com silêncio – fundamental na música! Através do Yared tive
várias possibilidades para colaboração em novos projectos de filmes, mas não
consegui imaginar a minha integração naquele sistema, não consegui ver-me a
compor um tema e a trabalhá-lo até ao limite das suas possibilidades, para vir
depois um produtor dizer-me - «Não, isto não serve porque não vende.» Toda
aquela megalomania, e o star system
que a alimenta, não me ensinaram o que quer que fosse de válido. Não quis
entrar naquele jogo. Ficou-me, da experiência no Talented Mr. Ripley, o gosto do convívio com o Gabriel Yared e com
o Anthony Minghella, ambos com uma sólida cultura musical, e a proximidade,
nalguns casos muito agradável, com alguns actores, como o Matt Daemon e o Jude
Law, por exemplo. Além de que, durante todo o processo do filme, nós, os
músicos, estivemos sempre muito unidos, o que foi óptimo. Mas tomei a decisão
de voltar a Lisboa.
MJS
– Aproximamo-nos do fim do tal período de «jejum» na edição de discos teus,
quando decides regressar a a Lisboa. Começaste logo a preparar o Nocturno?
BS
– Logo. Foi como um suspiro de alívio. O Nocturno,
que é um trio de jazz clássico – piano, contrabaixo (Carlos Barreto) e bateria
(Alexandre Frazão), foi um disco que correu, e continua ainda hoje, a correr
muito bem. Assim o diz a editora Clean Feed. O José Álvaro de Morais
convidou-me a fazer a música para o Quaresma.
No mesmo dia em que o Nocturno foi
lançado, no Fórum Lisboa, acabei de pôr a música no filme do José Álvaro. Foi
uma grande empreitada e uma bela aventura. Tinha feito antes música para um
telefilme, o Facas e Anjos do Eduardo
Guedes (também já desaparecido) e tinha gostado muito da relação estabelecida
com o realizador. Mas foi o José Álvaro de Morais quem me ensinou
verdadeiramente a perceber a importância do silêncio na arte. Foi ele que me
ajudou a ver claro como é a partir do silêncio que nasce todo o processo
criativo.
MJS
– Assisti, em 2005, ao lançamento do teu último disco, Ascent. Para além de conhecer agora melhor a importância do
silêncio na tua música, sei que conseguiste, como por magia, guiar a sala da
Culturgeste, em momentos de absoluta suspensão da música, até ao silêncio
total. Palco e plateia eram um só. Como se quem lá estava soubesse, por um
misterioso saber, que também fazia parte daquela partitura. Como é que, do teu
lado, viveste o que ali se passou?
BS
– A produção do disco e do espectáculo de lançamento foi, da parte de todos os que
nele trabalharam, excepcional. De coerência. De respeito mútuo. Fase a fase.
Até chegarmos àquela noite e ao encontro com o público, tão inesperado e tão
fantástico. Ensaiámos muito pouco em palco, naquele palco. Queria que nós, os
músicos, também fôssemos surpreendidos com o input das fotografias que iam sendo projectadas. E fomos. Corria
uma energia no ar da sala que nos contaminou no palco. O que ali se passou foi
indescritível. Gostei muito de sentir que esta nova proposta foi aceite como um
desafio, um risco, tanto para os músicos, como para o público. Ficará connosco
para sempre e, de certeza, a minha música vai viajar no futuro com o Ascent (primeiro trabalho de uma nova
trilogia sobre a imagem) a correr-me nas veias.
MJS
– Dá-me uma palavra de eleição.
BS
– Contenção. Quando se vive muito intensamente a música (a música que vive cá
dentro, que vem cá de dentro a fervilhar), o grande segredo para a sua
transmissão e partilha é o acto contido sobre o que temos e encontramos no
fundo de nós. Espelho disso é também a música original para o filme Alice, do Marco Martins, recentemente
lançada em CD (uma banda sonora editada… Aleluia!), que me fez olhar para a
composição de uma forma diferente. Temos que saber dar tempo ao «tempo» da
música. Ouvir-lhe a voz. Ouvir-lhe o silêncio.
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