12-03-2006
António
Feijó
Tem
um jeito singular, muito próprio, de falar sobre o saber a que mais dedica o
seu tempo – literatura. É de voz doce (com um discreto sotaque que oscila entre
o sopro atlântico da nossa costa nortenha e alguns tiques fonéticos dos
anglo-saxónicos). Tempera o que diz com um sentido de humor à margem do
habitual, ouve os outros atentamente e tira com frequência exemplos do bolso, a
maior parte das vezes desconcertantes, para acentuar a relação entre a matéria
que vai expondo e outras situações e assuntos. Imagino os seus alunos pasmados,
perplexos, curiosos com o que lhes é dado nas aulas. Imagino-os sobretudo
motivados, de um modo outro, para as mil e uma entradas que um livro sempre nos
pede que saibamos reconhecer e escolher. Esse modo, creio e desejo, contagiará
também o leitor desta conversa. A luz da tarde em que nos encontrámos tinha-se
posto lilás e havia um ponto de fuga de uma das janelas de sua casa que
escorregava para o mar, perto do lugar onde o rio já se tinha derramado. Habita
um espaço branco, simples funcional. Muito começou logo a ser dito, com o
gravador desligado. A máquina esperava um sinal, parecia uma intrusa sem se
saber comportar. Fiz um esforço para carregar no botão e outro maior para parar
tudo, quando foi chegada a hora. Por alguma razão conversámos, antes da
«conversa», sobre epitáfios e frases célebres antes do último suspiro.
Contei-lhe uma das minhas preferidas - «Pelo contrário!», proferida por Ibsen
imediatamente antes de morrer, depois de o seu médico o ter observado e, com
entusiasmo e convicção, informar a senhora Ibsen que o doente se encontrava
bastante melhor do que na véspera. O António escolheu uma enigmática frase,
inscrita no túmulo do grande actor que foi W.C. Fields. Parece que tendo uma certa
vez visitado Filadélfia, foi-lhe perguntado, quando regressou a Baltimore, como
é que tinha sido a estadia. W.C. Fields terá
respondido: «I would rather die than live
in Philadelphia!» (Preferia
morrer a viver em Filadélfia!). Porém, à hora da morte, escolheu como epitáfio:
«I would rather be in Philadelphia» (Preferia
estar em Filadélfia). Mistérios… que tecem a fertilidade do reino da vida. Que
o António celebra, com ou sem literatura. Que ajuda a desvendar aos que o
demandarem. Esta conversa foi em sua demanda.
MJS
– António, diz-me quem és.
AF-
Quando pensei que essa seria a primeira pergunta, ocorreu-me um passo de um
romance inglês do século XVIII em que uma personagem pergunta a outra: «Who are you?» (Quem é você?) e ouve
como resposta: «Don´t puzzle me.» (Não
me confunda). Percebo perfeitamente o sentido desta réplica mas, como tenho de
responder, direi, à luz de algumas coisas que acho interessantes e correctas,
que sou professor de literatura inglesa e americana, no Departamento de Estudos
Anglísticos da Faculdade de Letras de Lisboa, e professor num curso de
pós-graduação em Teoria da Literatura. Para além disso sou, naturalmente,
muitas outras coisas. A incapacidade de condensar todas essas coisas numa
definição, é decerto comum a toda a gente. Há características próprias das
pessoas, é claro, mas não sei se por aí se pode chegar a uma ideia de quem
somos. Se eu disser que tento perceber e não perder nada do que se passa à
minha volta, isto ajuda a definir quem sou? O que me levou a definir-me pelo
que faço tem a ver com uma apreciação do profissionalismo como valor. Quando as
pessoas deploram, por exemplo, o «estado da nação», sofrem o dilema de ter uma
grande preocupação global mas não saber exactamente como agir. A resolução do
problema é só uma: ser profissional naquilo que se faz. Ter uma teoria geral
sobre o mundo é uma coisa que se passa estritamente dentro de uma cabeça, é um
acontecimento privado que, quando muito, é unilateralmente espalhado nas
colheradas de cinza em que consiste muito do comentário político da
actualidade. Mais do que ter uma teoria geral, importa ser profissional naquilo
que se faz, o que implica seguir uma série de protocolos precisos, dependendo
da actividade. Se uma pessoa o fizer, então alguma coisa se altera. Mas talvez
possa concluir, dizendo que gostava de poder descrever-me, de modo
aparentemente paradoxal, como, por formação, um democrata natural.
MJS-
Estás-me a falar da exigência do mérito?
AF-
Sim, de algum modo, já que o profissionalismo pode ser visto como um termo para
o que para alguns poderá ser uma superstição, a superstição do mérito. O mérito
é evidentemente um valor no que se faz profissionalmente, em tudo o que se faz
e, deste ponto de vista, é um valor transversal, a qualquer actividade. Tem muito
a ver com a vontade de conhecer, com o grau de curiosidade e com o que se faz
com ela. Há tempos publicou-se as conclusões de um inquérito, onde se lia que
50 por cento dos portugueses julga saber já tudo o que tem a saber e não quer
saber mais nada. Há decerto uma falácia na pergunta ou no entendimento dela
pelos entrevistados. No contexto particular de, por exemplo, um problema com
uma máquina ou um brinquedo, as pessoas que responderam assim têm decerto
sempre perguntas a fazer – como é que isto funciona? para que serve? O
princípio aristotélico de que o desejo de conhecer é universal parece-me
irrefutável.
MJS
– A minha curiosidade leva-me agora a querer saber como é que chegaste à Teoria
da Literatura? Começaste cedo a ler e a questionar o que lias?
AF-
Tenho uma história, desse ponto de vista, que não é muito particular. Como
muitos outros, li sempre muito, desde muito cedo. Na minha carreira de
estudante, quando chegou a altura de decidir o que fazer, escolhi, como muitos
da minha geração, ir para Direito. Estive quase dois anos por lá (experiência
sobre a qual haveria muitas coisas interessantes a dizer) e houve um momento em
que decidi desistir e pensar no que fazer. Escolhi Filologia, Literatura. Uma
das razões, a principal, foi a de fazer da leitura a minha actividade
profissional. Quanto à Teoria da Literatura… há dois modos de poder entendê-la
– um modo «forte», que pretende estabelecer um método ou algoritmo que, se
correctamente utilizado, produz resultados (este modo é para mim completamente
infundado), e um outro modo «fraco», que é o que resulta de alguém que lê
alguma coisa com atenção e tenta inevitavelmente articular para si mesmo em que
consistiu a experiência. Pode articulá-la de várias maneiras, podendo mesmo uma
delas ser a de construir «teorias». Não é a maneira mais interessante. Há um
autor inglês que diz que construir teorias é um sinal de inteligência, mas
abster-se de teorizar é um sinal de sabedoria. É portanto possível usar «Teoria
da Literatura», como aliás usamos no programa de pós-graduação desse nome na
Faculdade de Letras, como uma etiqueta. Uma etiqueta para denotar o quê? Para
denotar tentativas de articulação, que alguns tentam fazer, de problemas
particulares que surgem em relação a textos literários, à intersecção entre
literatura e filosofia, literatura e história, etc. Incidindo sempre sobre
problemas locais, sem ter a pretensão de que, de algum modo, se vai co0nstruir
a teoria do que é «o literário», até porque historicamente todas as tentativas
de tentar determinar o que é «o literário» se revelam fúteis.
MJS
– Correndo o risco de achares que não tem sentido fazer esta pergunta
sacramental, pergunto: O que é para ti a literatura?
AF-
A pergunta «o que é…?» faz todo o sentido no campo da Física, por exemplo, onde
para perguntas como «o que é a densidade?», ou «o que é a massa?», há, presumo,
respostas exactas. Mas usar essa forma sintáctica da interrogação peremptória
para domínios como a literatura, é aplicar um critério a uma área de
problemática em que esse tipo de critério não é funcional. Neste sentido, essa
é uma pergunta que, em relação a este objecto particular – a literatura -, talvez
não faça sentido. Aquilo que se procurou durante muito tempo descrever como a
característica central do que é «o literário», e que portanto definiria a
literatura, nunca foi formulado de modo preciso. Houve tentativas brilhantes,
como a dos formalistas russos que caracterizavam esse princípio como o da
«literariedade». A literariedade, o característico do literário, poria em evidência
a ostensividade do enunciado, a natureza estranha daquele modo de dizer, em
detrimento do que está a ser dito. Isto não funciona, no entanto, porque na
vida real as pessoas utilizam este mesmo tipo de procedimento sem estarem a
fazer literatura. Para além disso, a literatura é um corpo muito instável. Hoje
poucos percebem que Pessoa, tal como Pascoaes, considerasse Guerra Junqueiro o
maior poeta do seu tempo. Entretanto, Junqueiro sofreu um eclipse quase total.
Esta questão invoca necessariamente um conhecido debate contemporâneo, o debate
sobre o chamado «cânone». O cânone é o conjunto daquelas obras que é objecto de
discurso e de referência obrigatórios, bem como de presença atenuada nos
programas escolares. Há uma série de teorias em relação a esta persistência dos
«clássicos». Teorias conspirativas pretendem que o cânone é uma construção
política, descrevendo esse elenco obrigatório de autores como motivado por
interesses particulares. As pessoas que falam com grande ferocidade teórica
contra a existência de um cânone, na prática não sugerem, todavia, alterações a
introduzir no elenco de nomes. Ou seja, com o lado esquerdo da boca denunciam a
sua existência, mas com o lado direito não nos dizem por que razão deverá
substituir-se, por exemplo, Eça de Queirós por Pinheiro Chagas ou Arnaldo Gama.
Em Portugal, há poucos candidatos recém-chegados ao cânone que o perturbem. Há
uma peculiaridade adicional: quem impugna teoricamente a existência do cânone,
persiste, no entanto, em falar dos autores canónicos. Mas decerto deverá
explicar o porquê dessa obstinação, sob pena de ser visto como conivente com os
interesses que denuncia, ou ter de explicar qual a natureza do valor que
reconhece nos autores de que persiste em falar. A discussão sobre a noção de
cânone foi importada dos Estados Unidos, país onde, de facto, alterações
parcelares do cânone se dão, e o debate sobre isso é virulento. Têm um
significado político, peculiar a uma democracia fortemente igualitária, e
traduzem recomposições demográficas. Um aumento significativo da população
hispânica, por exemplo, força o currículo a incorporar autores que digam alguma
coisa a esse segmento da população. O panteão está desenhado para acolher
mentores. É uma espécie de mesa do orçamento literário, que nenhum mandarinato
cultural controla, ou se arroga sequer a mera ideia de controlar.
MJS
– Esse fenómeno é exclusivo dos Estados Unidos?
AF-
Tem a sua origem lá, mas sofre depois um efeito de refracção pela Europa e por
outros lugares. Só que nos Estados Unidos isso corresponde a uma agenda
política muito forte, que é parte do jogo perpétuo de tentar conseguir sempre
uma parte maior do bolo, que é finito mas divisível. Como Portugal é uma
sociedade relativamente homogénea, um debate desta natureza é importado
teoricamente, mas praticamente não tem reflexo. Continua a usar-se, por
exemplo, um acrónimo indecoroso para se referir os países de expressão
portuguesa, mas não parece haver grande interesse pela literatura desses
lugares antes da década de 50.
MJS-
Fala-me da tua estadia nos Estados Unidos. Foste em busca de quê e o que é que
de mais significativo trouxeste contigo do tempo que lá viveste? Voltaste
«outro», profissionalmente?
AF-
Falar dos Estados Unidos, onde andei no último ano do liceu e fiz estudos
pós-graduados, é para mim, de há muito, uma conversa perfeitamente ociosa. Por
várias razões. Em primeiro lugar, toda a gente julga saber do que fala. A
ignorância e os mal-entendidos são tantos que, na tentativa inicial de insinuar
que talvez aquele lugar não seja transparente mas opaco, e opaco para mim,
apareço como um zelota. Falam-me de filmes e da televisão como reveladores.
Mas, aceitar que isso retrate o lugar, decerto que não será um thriller que o fará, mas sim as
comédias, em que pessoas tomam pequenos-almoços e levam os filhos à escola. Em
segundo lugar, a evidência invocada e o modo como é usada são peculiares.
Refere-se um incidente, violento ou presumivelmente aberrante como a decisão de
um júri num tribunal, e da sua consideração resultará, dizem-me, sabermos o que
pensar de um lugar onde coisas dessas têm lugar. Para além de ignorar a
dimensão do país, perceptível se pensarmos no que seria as notícias das oito a
cobrir um espaço de Estocolmo a Lisboa, este tipo de evidência fica de tal modo
aquém da magnitude do que pretende provar que não vale a pena continuar. De
facto, perante um incidente como Columbine, em vez de logo o debater, deverá
perguntar-se previamente o que é que o interlocutor pensa dos Estados Unidos,
dependendo da resposta falarmos de Columbine ou não. Por outro lado,se, para um
português, habitualmente céptico, o futuro é mais ou menos igual ao passado, e
o mundo é por natureza envelhecido, a experiência americana é bem menos
previsível, porque o futuro é moldável, imediatamente plástico, e, se as
possibilidades estiverem presentes, é já. Quem admire a democracia americana
deverá pensar sempre que um projecto tão extraordinário, «a casa de toda a
gente» como lhe chamou António José Saraiva, é falível.
MJS
– A escrita do cronista de jornais pode, no teu entender, atingir o
«literário», ser literatura?
AF
– É evidente que há coisas publicadas como peças jornalísticas que, mais tarde,
adquirem importância literária. Nos casos americano e inglês, a chamada crítica
literária é profissional, universitária, e tem um circuito que, sendo embora
poroso, é mais ou menos de guilda. Depois, ao lado, no jornalismo, há as
recensões críticas do movimento editorial corrente. Essas têm outro âmbito, os universitários
lêem-nas com maior ou menor atenção, mas raramente as citam ou usam, enquanto
os recenseadores críticos saem das universidades e, de algum modo, reproduzem
no exterior esse saber adquirido. São campeonatos diferentes, com troféus
distintos. Sai gente das universidades, educada num certo tipo de teorização e
de investigação, que vai depois escrever guiões para Hollywood. Por isso é que
podemos encontrar num filme americano, dos mais banais, em contrabando ou
explicitamente, argumentos e diálogos com muito piscar de olho erudito. Em
Portugal acontece vermos coligidos em livro, onde ganham uma unidade
importante, textos anteriormente publicados em jornais. É o caso do
extraordinário livro de M. S. Lourenço, Os
Degraus do Parnaso, ou de Miguel Esteves Cardoso, cujas crónicas fazem dele
um émulo do romântico alemão Jean-
-Paul Richter, de quem Agustina Bessa-Luis tanto gosta. Podemos
perguntar-nos se uma crónica, ou uma série de crónicas sobre gastronomia, é
«literário». Mas, se for visto como uma espécie de guarda-rios que separa o
candidato a canónico do não canónico, o «literário» é algo de solene e falso.
Há um texto inglês do século XVI que diz que o que torna um autor «clássico» é
a sua cooptação por um painel virtual de pares. Se outros autores incorporam
«aquilo», tácita ou explicitamente, e o tomam como algo de interessante, dá-se
então um efeito de tracção que a posteridade acolhe. É como um grupo de
marceneiros a olhar para uma cómoda e a reconhecer que está bem feito. É talvez
o modo mais certo de descrever isto.
MJS
– Quando pegas num livro de um autor desconhecido avalias logo a sua qualidade,
ou interesse, pelas primeiras páginas?
AF
– O pintor e autor Wyndham Lewis tinha um teste a que chamava «o teste do
taxista», que consistia em abrir um livro, ler uma página e logo ver se valia a
pena continuar ou não. Todos nós fazemos juízos de valor mais ou menos
expeditos sobre aquilo que lemos. Isto prende-se com a questão de saber o que é
que torna um objecto, neste caso um texto, interessante ou valioso. Lembro-me
de há anos tentar ler Pedro Páramo de
Juan Rulfo. Tentei várias vezes e não consegui, para grande frustração minha,
porque percebi que tinha algo de muito sério na mão. Uma vez, em conversa com
alguém para quem Pedro Páramo é um
texto extraordinário, referi-lhe esta minha incapacidade. Disse-me então: «Isso
só quer dizer que não és “rulfiano”». Há, de facto, um domínio em que a nossa
relação com um texto particular depende de pertencermos, ou não, àquela
família. Uma das coisas que para mim é central na leitura, é perceber qual é a
cara da pessoa que escreve (num sentido fisionómico peculiar, já que sou um
leitor cego, não alucino as cenas que leio num romance). Tento saber o que é
que faz aquela cabeça funcionar. Enquanto se mantém insondável, vou ficando
pacientemente à espera. Há um momento em que julgo perceber quem é a pessoa do
outro lado. Com o cinema passa-se a mesma coisa, não quero ver um filme se não
tiver visto o primeiro plano, não por purismo cinéfilo, que não tenho, mas por
ser desse plano, ou contra ele, que todos os outros se engendram. Vejo um filme
sempre de dois modos – um, banal, que é o de tentar vê-lo do ponto de vista de
quem o fez. Às vezes penso que não sei o que caracteriza quem o fez.
Aconteceu-me isso, por exemplo, com o primeiro filme que vi de David Lynch (nada
sabia sobre ele), Blue Velvet.
Pensei: isto é de alguém que foi submetido a uma tortura intensa e brutal nos
seus anos de liceu, mas não percebo exactamente de onde vem. Ao ver mais tarde The Night of the Hunter, de Charles
Laughton, que nunca tinha visto e há muito queria ver, percebi que era o
percursor de Blue Velvet. (O mesmo se
dá, por exemplo, com E.T. e O Milagre de Milão de De Sica.) Às vezes
basta estabelecer uma relação entre dois objectos para se obter um laço
clarificador. Há evidentemente um perigo: quando analisamos um objecto
interessante, se pensamos que o trabalho a fazer é reduzi-lo ao que é familiar,
estamos a domesticá-lo e, ipso facto,
a destruí-lo. Há quem pense que a interpretação consiste nessa tentativa de
neutralizar o que há de tóxico no objecto, de trazê- -lo para casa.
MJS
– Relativamente à interpretação, interessa-me o conceito de «apropriação», que
acho diferente de, mas talvez vizinho, disso a que chamas «domesticação».
AF
– Claro que é outra coisa, nem que seja o facto de associarmos um texto a outro
e estarmos a introduzir tudo num conjunto, num contínuo de objectos da mesma
natureza, em relação aos quais estabelecemos diferenças ou parentescos. Rich and strange é parte de um verso de
Shakespeare, utilizada por alguns para referir objectos (textos, no caso) que
não queremos reduzir, deixando-os intactos na sua riqueza e na sua estranheza.
O seu interesse é perpétuo, muito justamente porque, às vezes, a sua natureza
nos repele. Quando li pela primeira vez Hamlet,
pensei que o autor era um quase psicótico. As descrições da sexualidade são
autoflagelações de tal modo ásperas, que pensei que só podiam exceder as
personagens, emanar do autor, e ter sido escritas por uma cabeça psicótica.
Mais tarde preferi descrições da peça em que a ideia de que conteúdos
intratáveis excederiam as personagens e contaminariam o autor, era vista como
desinteressante. De facto, um texto dessa magnitude é, de algum modo,
intratável, e excede sempre o intérprete.
MJS
– O verso de Shakespeare remete-nos para a complexidade de alguns textos. Mas,
e os textos (ditos) simples? Podem eles também ser «ricos e estranhos»?
AF
– Absolutamente. Há pouco falei do Junqueiro, gosto imenso de Os Simples. Há literatura caracterizada
por essa «simplicidade», que é da mais alta e, por vezes, mais difícil
literatura. Estou a pensar num pequeno poema do romântico inglês, Wordsworth,
um epitáfio de duas quadras, em relação ao qual se escreveram já resmas de
papel. Parece um poema simples, mas a sua complexidade é imensa. Num outro
poema fala de um campo de narcisos a dançarem ao vento, que suscita, de modo
simpático, uma dança no seu coração de observador. Hoje, nem em jogos florais,
se ainda existem, isto soaria estranho, mas há dois séculos, os contemporâneos
de Wordsworth viram na desmesurada repercussão de um acontecimento tão trivial
no íntimo do autor, um sinal de demência. O interessante é perceber por que
seria uma trivialidade tida por sintomática de demência. Se conseguirmos
perceber porquê, estamos a raspar a fuligem que nos torna ininteligível a
natureza maior do acontecimento que esses versos marcam. Este tópico é
essencial para a compreensão do chamado Romantismo e dos seus autores. Vamos
encontrá-lo em Fernando Pessoa, de um modo muito forte – o problema da «consciência
de si», o desajuste sistemático entre o que está a sentir e o que está a
pensar, etc. João Gaspar Simões, autor de uma importante biografia de Pessoa,
não era grande admirador dos heterónimos
e achava que o melhor de Fernando Pessoa estava nos poemas ortónimos, onde o
poeta se reencontra com a genuína «tradição lírica portuguesa». Simões julgava
também saber exactamente qual o primeiro poema que Pessoa escrevera como
Pessoa: «Ela canta, pobre ceifeira…». Ora o curioso é que «Ela canta, pobre ceifeira…»,
como Jorge de Sena fez notar nos anos 50, é uma versão que Pessoa fez de um poema
de Wordsworth, o que perturba fortemente a noção de que é ali que ele
reencontra a tradição lírica portuguesa. Se Gaspar Simões estava neste ponto
errado, também estava certo, porque aquele poema é realmente decisivo para
Pessoa. É em «Ela canta, pobre ceifeira…» que Pessoa condensa o encontro com um
certo tipo de dilemas.
MJS
– Estando nós a atingir o termo desta conversa, diz-me em síntese, o que é um
escritor «maior».
AF
– Seguramente aquele que, como Santo Agostinho ou Rousseau, estando a falar do
seu tempo, anuncia e introduz, mesmo que de modo difuso, alterações maciças da
consciência. Hoje é mais difícil imaginar que isso possa acontecer
literariamente, porque o fluxo do que é comunicável, e comunicado numa
tagarelice sem fim, é de tal modo volátil e contínuo que ninguém consegue
totalizá-lo, até pelo conjunto dos múltiplos e segregados segmentos em que se
organiza. Pensar que houve um tempo em que isso foi possível não é deplorar que
o mundo tenha tido uma existência orgânica, mas já não tem. Nunca teve.
MJS
– Dá-me uma palavra de eleição.
AF
– Não tenho uma palavra de eleição, mas pensei, no entanto, numa breve citação
que pode talvez substituí-la. Lembro-me de ter entrado numa livraria, quando
andava no liceu, e ter comprado um livro A
Condenação à Morte (La mise à mort)
de alguém que viria a ser um dos meus autores favoritos, Aragon. O livro tinha
uma epígrafe, quatro versos de Pasternak que nunca mais esqueci, embora não
tenha memória particular para o que leio. Respondo à tua pergunta com esses
quatro versos: «Ora ser velho ´Roma/ Que em vez de carros e andas/ Exige não a
comédia/ Mas que se cumpra a condenação à morte.»
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