domingo, 13 de outubro de 2013

Maria João Seixas entrevista Bernardo Sassetti

18-12-2005
Bernardo Sassetti

O auditório da Culturgeste estava cheio, a pedir mais lugares para os que não tinham conseguido entrar. Quando as luzes se apagaram, o ecrã do fundo do palco começou a ser habitado por um puzzle de sombras, puras abstracções de fotografias, projectadas como pontos de fuga para o nosso olhar. Eram cintilações despojadas, difusas numa névoa a preto e branco, dando a ver através da vidraça de uma janela os ramos de uma árvore, ou uma ruela gelada, por onde vultos (Bernardo e uns seus companheiros de estrada?) caminham ao longe, de costas, para o longe de umas tantas casas, ou ainda… Pareceu-me então que todos nós, no conforto das nossas cadeiras, nos pusemos à escuta do sopro frio de um vento que devia estar a varrer aquela rua, aqueles ramos, aqueles casacos e os corpos que cobriam, no instante em que a câmara os fixou. Pareceu-me isso mas o que sei é que se fez silêncio e que só quando os músicos ocuparam os seus lugares em cena é que as nossas palmas nos reaqueceram. A seguir a esse silêncio e a essas primeiras palmas fez-se música e a plateia «estremeceuzinho», como prodigiosamente Guimarães Rosa nos ensinou a dizer. A música que se ouviu foi também feita de silêncios. Longos, alguns. Convocados por uma poderosa batuta invisível, largámos os tiques habituais das salas de concerto – ninguém tossiu, ninguém desembrulhou o rebuçado calmante, ninguém se mexeu nos assentos. O que aconteceu foi que nos integrámos, de respiração suspensa, na voz do concerto, mudos quando as teclas e as cordas e as percussões se calavam, vibrando com os acordes dos instrumentos quando eles falavam alto e forte. Foi na apresentação de Ascent, último e belo disco do (duplo) Trio Bernardo Sassetti, ou melhor do Bernardo Sassetti Trio2. Inesquecível. Quando uma entrevista começa por perguntar quem se é, denuncia logo a curiosidade pelo trilho dos passos de quem está diante de nós. Quantos mais anos tiver a pessoa entrevistada, mais longa será, em princípio, essa viagem à memória de quem somos, donde viemos, o que fizemos para chegar até aqui. Se for jovem, como o Bernardo, corre-se o risco de ouvirmos o relato de um percurso naturalmente mais curto, ainda em dificuldades de balanço. Mas a intensidade e a precisão com que ele se contou, para além de surpreendente, foi reveladora de uma pessoa que cedo descobriu que tinha de estar na vida a tempo inteiro, sem distracções sobre o sentido que era imperativo dar-lhe. Descobriu, no cedo do seu tempo pessoal, que a música, e mais especificamente esse território de liberdade extrema que é o jazz, seria a pauta que moldaria esse sentido. Pauta exigente, que não admite desrespeitos. Entregou-se-lhe sem reservas e, em troca, recebeu dela um dom valioso – a tal batuta poderosa e invisível que, numa sala de concerto ou em casa a ouvirmos um CD, nos guia até quase à fusão com a sua música. Com a música.
MJS – Bernardo, diz-me quem és.
BS- Que difícil! Sou um terrestre, muitas vezes feliz, mas um terrestre que caminha de uma forma muito aérea, muito suspensa, à procura de qualquer coisa, sobretudo na música, que ainda não sabe muito bem o que é. E isso inquieta-me o espírito. Sempre. Vivo com esta inquietação vinte e quatro horas por dia.
MJS- Vives com esse «sobretudo na música» desde quando?
BS- A inquietação que referi tem crescido cá dentro sobretudo desde um período em que não gravei nada com o meu nome, um jejum de seis anos, a seguir à saída do Mundos, o meu segundo disco. Mas o viver a música seriamente vem muito de trás, embora não tivesse logo percebido o que fazer seriamente dela e com ela.
MJS – A tua escolaridade curricular foi sempre acompanhada de estudos de música e de piano?
BS- Comecei, aos dez anos, com estudos de música clássica, acompanhado por dois professores, privados. Nunca frequentei uma escola de música. Cheguei a uma certa altura, sobretudo com o professor António Menéres Barbosa, em que tive que optar – ou era a música improvisada, ou era a música clássica. Ele entregava-me peças para estudar e o que eu fazia era dar-lhes uma volta e interpretá-las à minha maneira, às vezes de uma forma extrema. Fui sempre muito inquieto, até irreverente. Nunca consegui, desde a adolescência, logo na escola, viver bem com demasiadas regras. Era a minha forma de ser e isso espelhou-se na música e na sua aprendizagem. O meu irmão Francisco era o meu ídolo. Nascido seis anos antes de mim, também estudava piano e era a minha referência. Foi assim até eu perceber que a minha música não era aquela música escrita que ele estudava e tocava bem melhor do que eu. Precisava de liberdade para conseguir viver no meio da música. Descobri o jazz, aos doze anos, ao ouvir Bill Evans numa transmissão de RTP (no «Jazz Magazine») de um concerto que ele deu em Lisboa, pouco antes de morrer, no Teatro São Carlos, imagine-se. Fiquei fascinado. E acabei finalmente por optar – foi a primeira grande mudança na minha vida. Pus-me a estudar jazz muito seriamente, o que era muitíssimo complicado na altura em Portugal. Teve também grande importância o facto de ir viver para França durante um ano. O meu pai foi dar um curso sobre Energia na Universidade de Grenoble, eu tinha quinze anos e como sou o último de oito irmãos, o mais novo da família, acompanhei os meus pais. Pensei que aquele ano em França ia ser difícil e que talvez me fizesse desistir da música. Quando entrei na casa que tinha sido alugada e vi um piano na sala, como em Lisboa, nem queria acreditar. Acabou por ser nessa estadia que efectivamente percebi o que pequenas coisas postas à disposição de quem quer aprender e fazer música podem ser determinantes. Descobri um clube-discoteca, de que me fiz sócio, o que me dava a possibilidade de alugar três ou quatro discos por dia. Tinham aparecido os CDs e, com uma aparelhagem simples, comecei a gravá-los em casa. A secção de jazz desse clube era extraordinária e gravei centenas de cassettes. Passava o tempo (que me sobrava das aulas de um curso intensivo de francês para estudantes estrangeiros) a ouvir discos na tal discoteca, a escolher os que queria gravar e, com o piano ao lado, a experimentar improvisações. A obsessão pelo jazz vem daí. Devia ser considerado um adolescente diferente, não especial, mas diferente, já que em vez de ouvir os sons da época passava as horas ligado a Duke Ellington e a Thelonius Monk. Quando regressei, em 1986, com dezasseis anos, já sabia que tinha um interesse interior profundo pelo jazz. Sabia também que esse interesse não era partilhável com muitas pessoas, o que é desconfortável.
MJS – O cumprimento de outros estudos, a seguir ao 12º ano, levou-te para que áreas?
BS- Não sabia muito bem o que queria fazer, mas tinha na ideia ir para Relações Internacionais. Essa ideia durou só uma semana, o tempo de tomar a decisão de me dedicar exclusivamente à música. No fim do liceu tive o primeiro convite para ir tocar fora, a Barcelona. Foi aí que se deu a segunda grande mudança na minha vida, quando percebi que existia um meio muito rico de músicos com a minha idade a aprender e a fazer música. Pessoas com quem eu tinha imenso em comum. A partir da experiência que vivi nesse Festival, e, 1989, resolvi «pôr-me a caminho».
MJS – Deixaste para trás o projecto das Relações Internacionais?
BS- Completamente. Nem cheguei a acabar o ensino secundário. A minha escolaridade ficou incompleta, legalmente tenho apenas o 9º ano, porque chumbei a História no 10º. Não havia História do Jazz! A decisão de abandonar os estudos foi motivo de alguma preocupação em casa. Apostar tudo na música de jazz não parecia muito sensato para assegurar um futuro com credibilidade…
MJS- Não percebi como é que o tal Festival de Barcelona te descobriu e convidou. Já tocavas em clubes?
BS- Falta explicar isso. Pouco depois da revelação do Bill Evans, conheci os irmãos Moreira e o seu Moreiras Jazztet. Foi com eles que iniciei a minha nova aprendizagem da música. Somos primos em terceiro grau e eles adoptaram-me como quinto elemento, partilhando comigo todas as suas experiências. O Miguel era o pianista mas, a partir do momento em que chegou à Universidade para estudar Astro-Física, teve que optar pelas esferas celestes. O quarteto deles, na época, era formado pelo Bernardo (contrabaixo), o Miguel (piano), o Pedro (saxofone tenor) e o João (trompete). Passei a estar com eles diariamente, tocávamos horas a fio e o João chegou mesmo a ir visitar-me a Grenoble. Foi com o Moreiras Jazztet, grupo onde eu já tocava, que fui ao Certame Ibérico de Orquestras de Jazz, em Barcelona, representar Portugal. Num espaço de três dias, com um calor insuportável, conhecemos uma série de músicos absolutamente notáveis. Um deles é até hoje como um grande irmão da música, tal a empatia que temos. Chama-se Perico Sanbeat, é valenciano e, para mim, um dos maiores saxofonistas do mundo. Ter tido a possibilidade de ver e sentir, junto de muitos dos músicos com quem nos cruzámos nesse festival, que a tal obsessão pelo jazz não se passava só comigo, deu-me um enorme ânimo. Mais tarde voltei a tocar em Barcelona, a convite do Zé Eduardo que, depois de ter criado cá a Escola do Hot Clube, foi viver para Barcelona e aí desenvolveu o seu trabalho no Taller de Musics, por onde o Perico e todos os participantes do CD Salssetti passaram. Propôs-nos que formássemos um Trio, baseado em Barcelona, para rodarmos com solistas americanos. É nesse momento que se dá a terceira grande mudança na minha vida, ao perceber que o jazz não é um trabalho individualista e solitário, mas um trabalho de entrega, ao vivo, sobretudo com solistas e músicos diferentes. Acho que é só a partir da compreensão e interiorização desta ideia que se começa a criar uma certa bagagem dentro do meio, difícil, do jazz.
MJS – Há pouco referiste o CD Salssetti, o primeiro disco com o título fundeado no teu nome. Conta-me mais.
BS – Gravei-o em 1992, tinha vinte e três anos. A editora foi a Groove-Movieplay, talvez a primeira editora de jazz portuguesa. Éramos seis músicos – o Perico, os irmãos Rossy (o Mário e o Jordi), o Bob Sands e o José Salgueiro, percussionista português e o homem mais criativo que alguma vez conheci. Houve ainda a participação especial de um músico cubano, a residir nos Estados Unidos, Paquito D’Rivera (clarinete e saxofone alto). Como sentíamos uma grande atracção pelos ritmos afro-cubanos, nomeadamente a salsa, o Paquito propôs esse título simbiótico e revelador – Salssetti (também a alcunha que me arranjou!), que não foi suficiente para atrair muitos ouvintes. Nessa época eu viajava muito entre Barcelona e o resto da Europa, até me fixar por algum tempo em Inglaterra, não sem antes ter tido que fazer um ano de serviço militar em Lisboa. Foi um ano perdido, que não serviu para nada, a não ser para reforçar um calo enorme que tenho na junção entre o polegar e o indicador… Fui «caixa», durante oito meses, na Banda da Região Militar de Lisboa. Tocava tarola e percussão, o que me fez muito bem, de um ponto de vista rítmico. Tive que estudar, aprender a aplicar-me. Sofri bastante nos quatro meses de recruta, mas o tempo da Banda foi hilariante, fora o ter que acordar todos os dias às sete da manhã para ir fazer guardas-de-honra. O momento de glória foi quando a Banda interpretou a «Suite Alentejana» do meu tio-avô, Luís de Freitas Branco, comigo às castanholas.
MJS – Largada a tarola, sentiste uma enorme vontade de sair de Lisboa e partiste de imediato para longe. Para onde?
BS – Fiz as malas, cheio de energia, em direcção a Londres. Fui à aventura e tive a grande sorte da minha vida – conhecer os músicos certos, no momento certo. Por uma razão quase insólita. No meio musical londrino da altura, 1992/93, havia uma escassez enorme de pianistas de jazz. Não percebi bem porquê, mas era assim. Tive, por isso, a oportunidade de tocar praticamente todos os dias, o que me permitia, para além de algumas ajudas familiares nos meses piores, pagar em leasing o meu piano. Deu-me um prazer enorme poder tocar à noite em clubes, de manhã participar em sessões em estúdio com músicos diferentes e, à tarde, fazer jam sessions, por aqui e por ali – em clubes, em bares, em casas particulares. Aconteceu-me o mesmo quando me aventurei a ir até Nova Iorque. É uma cidade que adoro, mas odiei o modo frio como lá se trabalha. Com o tal Trio de Barcelona conheci muitos solistas norte-americanos que viviam em Nova Iorque. Só que eles mudam radicalmente quando vêm à Europa e são outras pessoas quando estão nos Estados Unidos. Na Europa, temos praticamente que fazer de baby-sitters, com tudo muito bem «explicadinho»; em Nova Iorque, ignoram-nos quase totalmente. É uma experiência estranha. Convidam-nos para lá irmos, mas depois, quando chegamos, têm mais em que pensar. Tive alguns atritos, mesmo com músicos com quem já tinha tocado em salas europeias e com quem me tinha entendido bem. Em Londres, terra de cavalheiros, as coisas não se passaram assim.
MJS – E em Portugal, no meio da família dos músicos de jazz, o que é que se passa?
BS – É de facto uma família, os músicos revêem-se e apoiam-se dentro do meio. Existem mais e melhores músicos – se tal for comparado à década de 80, quando comecei. Mas, por incrível que possa parecer, existem também lobbies muito precisos dentro deste meio absolutamente minoritário – os puristas, os avant-gardistas e os… intermédios. Penso, no entanto, que se deviam criar mais oportunidades de ligação entre a nova geração a emergir no jazz nacional e alguns músicos de outros países, independentemente dos estilos musicais. Só assim pode crescer esta família e este é um dever absoluto dos principais organizadores dos festivais de jazz em Portugal. É um pouco desanimador saber que ainda se vive muito com a ideia do «vá para fora e volte cá para dentro» para que os artistas nacionais sejam bem aceites, mediatismo sintomático num país com apreciáveis crises de confiança. Coisas boas e importantes: o Hot Clube, que foi para mim como uma segunda casa. Actualmente não o frequento com a mesma regularidade. Reconheço que a minha vida e a minha música mudaram, talvez por ter passado onze intensos anos, de 1990 a 2001, a tocar à noite em tournées e em clubes de jazz. Agora, por exemplo, é de noite, em casa, que componho. Como gosto cada vez mais de compor, eu próprio me afastei um bocadinho dos clubes. A música que faço reflecte necessariamente esta mudança que se deu em mim, já é uma música um pouco híbrida, tem tanto de jazz, como não tem. Talvez pertença ao grupo dos intermédios!
MJS – Explica-me melhor para eu perceber. O que te trouxe para o jazz foi a profunda necessidade de liberdade na música e a consequente rejeição da pauta escrita. Quando compões, escreves. Deixas espaços em branco na partitura para «acontecer» o improviso?
BS – Não será bem isso. Pergunto-me muitas vezes «o que é que se escreve no jazz»? Escreve-se o leitmotiv, os chamados «temas» que são, no fundo, uma espécie de fio condutor que vai permitir e acolher o improviso. É da sua própria natureza suscitar a improvisação. Está lá inscrito, não está escrito. É um processo diferente daquele que utilizo na composição orquestral tradicional, ou na música para cinema, que tem menos liberdade e é, naturalmente, mais pensado na sua forma.
MJS – Regressemos às edições discográficas da tua música. O que é que veio a seguir ao Salsetti?
BS – Veio o Mundos, em 1996, com muitos dos músicos do Salsetti, mais uns tantos, como a Lucrécia, uma cantora cubana. Antes da gravação do disco e quando o Paquito D’Rivera ficou a tomar conta da United Nations Orchestra ( uma big jazz band), fundada pelo Dizzie Gillespie, fui por ele convidado a integrar essa orquestra e a participar nuns concertos pela Europa. Assinei, entretanto, um contrato por três anos com a Polygram (agora Universal), saiu o Mundos e aquela relação correu mal. A música que faço não se dá bem com a lógica de uma multinacional que, onde aposta, tem que ver de imediato garantias de vendas muito rápidas. Isso não aconteceu com o Mundos e o contrato foi rescindido, com muito boa aceitação de ambas as partes. Foi depois disso que estive seis anos sem gravar. Até 2001. Não sentia necessidade, vivia bem com os concertos que dava, sobretudo fora de Portugal. Foi também quando comecei a deixar aquele ritmo nocturno das actuações em clubes e a dedicar-me mais seriamente à composição. Todos os dias da semana, até às cinco, seis da manhã.
MJS – Até que surge o ano de 2001. O que é que aconteceu em 2001?
BS – Aconteceu a gravação do Nocturno, o meu terceiro disco. Já lá vamos. Antes de 2001 aconteceram-me muitas coisas, uma delas muito importante – a de ter sido agarrado por um outro fascínio, o do cinema. Hoje faz parte de mim, é quase como uma actividade paralela da minha carreira. Recebi um dia a encomenda da banda sonora para um filma de 1930, o Maria do Mar, de Leitão de Barros. O gosto da composição para cinema nunca mais me largou. A encomenda desse trabalho partiu primeiro da estação de telavisão ARTE, mas, depois de alguns problemas contratuais com o canal, foi a Cinemateca Portuguesa que assegurou a conclusão do projecto. Pelo meio desses anos dei várias voltas ao mundo em concertos com um quinteto inglês, do trompetista Guy Barker e, a um dado momento, gravámos um disco com a participação especial do Sting. O Anthony Minghella ouviu o disco e disse - «Quero este quinteto no meu próximo filme». Foi assim que participámos na rodagem do Talented Mr. Ripley, em que tocámos cinco ou seis temas de jaz da banda sonora, da autoria do Gabriel Yared. Estava-se em 1998/99. Participámos ainda na promoção do filme em várias partes do mundo (Estados Unidos, Inglaterra, França, Itália), com temas criados por nós a partir da experiência da rodagem, tocados ao vivo. Foi uma jornada inacreditável. Não imaginava que houvesse orçamentos daquela monta para acompanhar a saída de um filme. Achei tudo grotescamente excessivo, com alguns pormenores patéticos. Só para se ter uma ideia, o custo das viagens e do cattering para a «promoção» de um filme de Hollywood é duas vezes superior ao orçamento para a «produção» de todos os filmes portugueses num ano. No mínimo! É alucinante.
MJS – Conseguiste aprender alguma coisa com esse envolvimento na grande máquina de produção de Hollywood?
BS – As condições dadas por Hollywood aos compositores e músicos são estupendas, mas recorre-se muito à fórmula fácil, para induzir o sentimento nos espectadores. Não suporto isso. Gosto de pensar na música de uma forma abstracta, útil, com silêncio – fundamental na música! Através do Yared tive várias possibilidades para colaboração em novos projectos de filmes, mas não consegui imaginar a minha integração naquele sistema, não consegui ver-me a compor um tema e a trabalhá-lo até ao limite das suas possibilidades, para vir depois um produtor dizer-me - «Não, isto não serve porque não vende.» Toda aquela megalomania, e o star system que a alimenta, não me ensinaram o que quer que fosse de válido. Não quis entrar naquele jogo. Ficou-me, da experiência no Talented Mr. Ripley, o gosto do convívio com o Gabriel Yared e com o Anthony Minghella, ambos com uma sólida cultura musical, e a proximidade, nalguns casos muito agradável, com alguns actores, como o Matt Daemon e o Jude Law, por exemplo. Além de que, durante todo o processo do filme, nós, os músicos, estivemos sempre muito unidos, o que foi óptimo. Mas tomei a decisão de voltar a Lisboa.
MJS – Aproximamo-nos do fim do tal período de «jejum» na edição de discos teus, quando decides regressar a a Lisboa. Começaste logo a preparar o Nocturno?
BS – Logo. Foi como um suspiro de alívio. O Nocturno, que é um trio de jazz clássico – piano, contrabaixo (Carlos Barreto) e bateria (Alexandre Frazão), foi um disco que correu, e continua ainda hoje, a correr muito bem. Assim o diz a editora Clean Feed. O José Álvaro de Morais convidou-me a fazer a música para o Quaresma. No mesmo dia em que o Nocturno foi lançado, no Fórum Lisboa, acabei de pôr a música no filme do José Álvaro. Foi uma grande empreitada e uma bela aventura. Tinha feito antes música para um telefilme, o Facas e Anjos do Eduardo Guedes (também já desaparecido) e tinha gostado muito da relação estabelecida com o realizador. Mas foi o José Álvaro de Morais quem me ensinou verdadeiramente a perceber a importância do silêncio na arte. Foi ele que me ajudou a ver claro como é a partir do silêncio que nasce todo o processo criativo.
MJS – Assisti, em 2005, ao lançamento do teu último disco, Ascent. Para além de conhecer agora melhor a importância do silêncio na tua música, sei que conseguiste, como por magia, guiar a sala da Culturgeste, em momentos de absoluta suspensão da música, até ao silêncio total. Palco e plateia eram um só. Como se quem lá estava soubesse, por um misterioso saber, que também fazia parte daquela partitura. Como é que, do teu lado, viveste o que ali se passou?
BS – A produção do disco e do espectáculo de lançamento foi, da parte de todos os que nele trabalharam, excepcional. De coerência. De respeito mútuo. Fase a fase. Até chegarmos àquela noite e ao encontro com o público, tão inesperado e tão fantástico. Ensaiámos muito pouco em palco, naquele palco. Queria que nós, os músicos, também fôssemos surpreendidos com o input das fotografias que iam sendo projectadas. E fomos. Corria uma energia no ar da sala que nos contaminou no palco. O que ali se passou foi indescritível. Gostei muito de sentir que esta nova proposta foi aceite como um desafio, um risco, tanto para os músicos, como para o público. Ficará connosco para sempre e, de certeza, a minha música vai viajar no futuro com o Ascent (primeiro trabalho de uma nova trilogia sobre a imagem) a correr-me nas veias.
MJS – Dá-me uma palavra de eleição.
BS – Contenção. Quando se vive muito intensamente a música (a música que vive cá dentro, que vem cá de dentro a fervilhar), o grande segredo para a sua transmissão e partilha é o acto contido sobre o que temos e encontramos no fundo de nós. Espelho disso é também a música original para o filme Alice, do Marco Martins, recentemente lançada em CD (uma banda sonora editada… Aleluia!), que me fez olhar para a composição de uma forma diferente. Temos que saber dar tempo ao «tempo» da música. Ouvir-lhe a voz. Ouvir-lhe o silêncio.       
      



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