domingo, 13 de outubro de 2013

Maria João Seixas entrevista António M. Feijó

12-03-2006
António Feijó

Tem um jeito singular, muito próprio, de falar sobre o saber a que mais dedica o seu tempo – literatura. É de voz doce (com um discreto sotaque que oscila entre o sopro atlântico da nossa costa nortenha e alguns tiques fonéticos dos anglo-saxónicos). Tempera o que diz com um sentido de humor à margem do habitual, ouve os outros atentamente e tira com frequência exemplos do bolso, a maior parte das vezes desconcertantes, para acentuar a relação entre a matéria que vai expondo e outras situações e assuntos. Imagino os seus alunos pasmados, perplexos, curiosos com o que lhes é dado nas aulas. Imagino-os sobretudo motivados, de um modo outro, para as mil e uma entradas que um livro sempre nos pede que saibamos reconhecer e escolher. Esse modo, creio e desejo, contagiará também o leitor desta conversa. A luz da tarde em que nos encontrámos tinha-se posto lilás e havia um ponto de fuga de uma das janelas de sua casa que escorregava para o mar, perto do lugar onde o rio já se tinha derramado. Habita um espaço branco, simples funcional. Muito começou logo a ser dito, com o gravador desligado. A máquina esperava um sinal, parecia uma intrusa sem se saber comportar. Fiz um esforço para carregar no botão e outro maior para parar tudo, quando foi chegada a hora. Por alguma razão conversámos, antes da «conversa», sobre epitáfios e frases célebres antes do último suspiro. Contei-lhe uma das minhas preferidas - «Pelo contrário!», proferida por Ibsen imediatamente antes de morrer, depois de o seu médico o ter observado e, com entusiasmo e convicção, informar a senhora Ibsen que o doente se encontrava bastante melhor do que na véspera. O António escolheu uma enigmática frase, inscrita no túmulo do grande actor que foi W.C. Fields. Parece que tendo uma certa vez visitado Filadélfia, foi-lhe perguntado, quando regressou a Baltimore, como é que tinha sido a estadia. W.C. Fields terá respondido: «I would rather die than live in Philadelphia!» (Preferia morrer a viver em Filadélfia!). Porém, à hora da morte, escolheu como epitáfio: «I would rather be in Philadelphia» (Preferia estar em Filadélfia). Mistérios… que tecem a fertilidade do reino da vida. Que o António celebra, com ou sem literatura. Que ajuda a desvendar aos que o demandarem. Esta conversa foi em sua demanda.
MJS – António, diz-me quem és.
AF- Quando pensei que essa seria a primeira pergunta, ocorreu-me um passo de um romance inglês do século XVIII em que uma personagem pergunta a outra: «Who are you?» (Quem é você?) e ouve como resposta: «Don´t puzzle me.» (Não me confunda). Percebo perfeitamente o sentido desta réplica mas, como tenho de responder, direi, à luz de algumas coisas que acho interessantes e correctas, que sou professor de literatura inglesa e americana, no Departamento de Estudos Anglísticos da Faculdade de Letras de Lisboa, e professor num curso de pós-graduação em Teoria da Literatura. Para além disso sou, naturalmente, muitas outras coisas. A incapacidade de condensar todas essas coisas numa definição, é decerto comum a toda a gente. Há características próprias das pessoas, é claro, mas não sei se por aí se pode chegar a uma ideia de quem somos. Se eu disser que tento perceber e não perder nada do que se passa à minha volta, isto ajuda a definir quem sou? O que me levou a definir-me pelo que faço tem a ver com uma apreciação do profissionalismo como valor. Quando as pessoas deploram, por exemplo, o «estado da nação», sofrem o dilema de ter uma grande preocupação global mas não saber exactamente como agir. A resolução do problema é só uma: ser profissional naquilo que se faz. Ter uma teoria geral sobre o mundo é uma coisa que se passa estritamente dentro de uma cabeça, é um acontecimento privado que, quando muito, é unilateralmente espalhado nas colheradas de cinza em que consiste muito do comentário político da actualidade. Mais do que ter uma teoria geral, importa ser profissional naquilo que se faz, o que implica seguir uma série de protocolos precisos, dependendo da actividade. Se uma pessoa o fizer, então alguma coisa se altera. Mas talvez possa concluir, dizendo que gostava de poder descrever-me, de modo aparentemente paradoxal, como, por formação, um democrata natural.
MJS- Estás-me a falar da exigência do mérito?
AF- Sim, de algum modo, já que o profissionalismo pode ser visto como um termo para o que para alguns poderá ser uma superstição, a superstição do mérito. O mérito é evidentemente um valor no que se faz profissionalmente, em tudo o que se faz e, deste ponto de vista, é um valor transversal, a qualquer actividade. Tem muito a ver com a vontade de conhecer, com o grau de curiosidade e com o que se faz com ela. Há tempos publicou-se as conclusões de um inquérito, onde se lia que 50 por cento dos portugueses julga saber já tudo o que tem a saber e não quer saber mais nada. Há decerto uma falácia na pergunta ou no entendimento dela pelos entrevistados. No contexto particular de, por exemplo, um problema com uma máquina ou um brinquedo, as pessoas que responderam assim têm decerto sempre perguntas a fazer – como é que isto funciona? para que serve? O princípio aristotélico de que o desejo de conhecer é universal parece-me irrefutável.
MJS – A minha curiosidade leva-me agora a querer saber como é que chegaste à Teoria da Literatura? Começaste cedo a ler e a questionar o que lias?
AF- Tenho uma história, desse ponto de vista, que não é muito particular. Como muitos outros, li sempre muito, desde muito cedo. Na minha carreira de estudante, quando chegou a altura de decidir o que fazer, escolhi, como muitos da minha geração, ir para Direito. Estive quase dois anos por lá (experiência sobre a qual haveria muitas coisas interessantes a dizer) e houve um momento em que decidi desistir e pensar no que fazer. Escolhi Filologia, Literatura. Uma das razões, a principal, foi a de fazer da leitura a minha actividade profissional. Quanto à Teoria da Literatura… há dois modos de poder entendê-la – um modo «forte», que pretende estabelecer um método ou algoritmo que, se correctamente utilizado, produz resultados (este modo é para mim completamente infundado), e um outro modo «fraco», que é o que resulta de alguém que lê alguma coisa com atenção e tenta inevitavelmente articular para si mesmo em que consistiu a experiência. Pode articulá-la de várias maneiras, podendo mesmo uma delas ser a de construir «teorias». Não é a maneira mais interessante. Há um autor inglês que diz que construir teorias é um sinal de inteligência, mas abster-se de teorizar é um sinal de sabedoria. É portanto possível usar «Teoria da Literatura», como aliás usamos no programa de pós-graduação desse nome na Faculdade de Letras, como uma etiqueta. Uma etiqueta para denotar o quê? Para denotar tentativas de articulação, que alguns tentam fazer, de problemas particulares que surgem em relação a textos literários, à intersecção entre literatura e filosofia, literatura e história, etc. Incidindo sempre sobre problemas locais, sem ter a pretensão de que, de algum modo, se vai co0nstruir a teoria do que é «o literário», até porque historicamente todas as tentativas de tentar determinar o que é «o literário» se revelam fúteis.
MJS – Correndo o risco de achares que não tem sentido fazer esta pergunta sacramental, pergunto: O que é para ti a literatura?
AF- A pergunta «o que é…?» faz todo o sentido no campo da Física, por exemplo, onde para perguntas como «o que é a densidade?», ou «o que é a massa?», há, presumo, respostas exactas. Mas usar essa forma sintáctica da interrogação peremptória para domínios como a literatura, é aplicar um critério a uma área de problemática em que esse tipo de critério não é funcional. Neste sentido, essa é uma pergunta que, em relação a este objecto particular – a literatura -, talvez não faça sentido. Aquilo que se procurou durante muito tempo descrever como a característica central do que é «o literário», e que portanto definiria a literatura, nunca foi formulado de modo preciso. Houve tentativas brilhantes, como a dos formalistas russos que caracterizavam esse princípio como o da «literariedade». A literariedade, o característico do literário, poria em evidência a ostensividade do enunciado, a natureza estranha daquele modo de dizer, em detrimento do que está a ser dito. Isto não funciona, no entanto, porque na vida real as pessoas utilizam este mesmo tipo de procedimento sem estarem a fazer literatura. Para além disso, a literatura é um corpo muito instável. Hoje poucos percebem que Pessoa, tal como Pascoaes, considerasse Guerra Junqueiro o maior poeta do seu tempo. Entretanto, Junqueiro sofreu um eclipse quase total. Esta questão invoca necessariamente um conhecido debate contemporâneo, o debate sobre o chamado «cânone». O cânone é o conjunto daquelas obras que é objecto de discurso e de referência obrigatórios, bem como de presença atenuada nos programas escolares. Há uma série de teorias em relação a esta persistência dos «clássicos». Teorias conspirativas pretendem que o cânone é uma construção política, descrevendo esse elenco obrigatório de autores como motivado por interesses particulares. As pessoas que falam com grande ferocidade teórica contra a existência de um cânone, na prática não sugerem, todavia, alterações a introduzir no elenco de nomes. Ou seja, com o lado esquerdo da boca denunciam a sua existência, mas com o lado direito não nos dizem por que razão deverá substituir-se, por exemplo, Eça de Queirós por Pinheiro Chagas ou Arnaldo Gama. Em Portugal, há poucos candidatos recém-chegados ao cânone que o perturbem. Há uma peculiaridade adicional: quem impugna teoricamente a existência do cânone, persiste, no entanto, em falar dos autores canónicos. Mas decerto deverá explicar o porquê dessa obstinação, sob pena de ser visto como conivente com os interesses que denuncia, ou ter de explicar qual a natureza do valor que reconhece nos autores de que persiste em falar. A discussão sobre a noção de cânone foi importada dos Estados Unidos, país onde, de facto, alterações parcelares do cânone se dão, e o debate sobre isso é virulento. Têm um significado político, peculiar a uma democracia fortemente igualitária, e traduzem recomposições demográficas. Um aumento significativo da população hispânica, por exemplo, força o currículo a incorporar autores que digam alguma coisa a esse segmento da população. O panteão está desenhado para acolher mentores. É uma espécie de mesa do orçamento literário, que nenhum mandarinato cultural controla, ou se arroga sequer a mera ideia de controlar.
MJS – Esse fenómeno é exclusivo dos Estados Unidos?
AF- Tem a sua origem lá, mas sofre depois um efeito de refracção pela Europa e por outros lugares. Só que nos Estados Unidos isso corresponde a uma agenda política muito forte, que é parte do jogo perpétuo de tentar conseguir sempre uma parte maior do bolo, que é finito mas divisível. Como Portugal é uma sociedade relativamente homogénea, um debate desta natureza é importado teoricamente, mas praticamente não tem reflexo. Continua a usar-se, por exemplo, um acrónimo indecoroso para se referir os países de expressão portuguesa, mas não parece haver grande interesse pela literatura desses lugares antes da década de 50.
MJS- Fala-me da tua estadia nos Estados Unidos. Foste em busca de quê e o que é que de mais significativo trouxeste contigo do tempo que lá viveste? Voltaste «outro», profissionalmente?
AF- Falar dos Estados Unidos, onde andei no último ano do liceu e fiz estudos pós-graduados, é para mim, de há muito, uma conversa perfeitamente ociosa. Por várias razões. Em primeiro lugar, toda a gente julga saber do que fala. A ignorância e os mal-entendidos são tantos que, na tentativa inicial de insinuar que talvez aquele lugar não seja transparente mas opaco, e opaco para mim, apareço como um zelota. Falam-me de filmes e da televisão como reveladores. Mas, aceitar que isso retrate o lugar, decerto que não será um thriller que o fará, mas sim as comédias, em que pessoas tomam pequenos-almoços e levam os filhos à escola. Em segundo lugar, a evidência invocada e o modo como é usada são peculiares. Refere-se um incidente, violento ou presumivelmente aberrante como a decisão de um júri num tribunal, e da sua consideração resultará, dizem-me, sabermos o que pensar de um lugar onde coisas dessas têm lugar. Para além de ignorar a dimensão do país, perceptível se pensarmos no que seria as notícias das oito a cobrir um espaço de Estocolmo a Lisboa, este tipo de evidência fica de tal modo aquém da magnitude do que pretende provar que não vale a pena continuar. De facto, perante um incidente como Columbine, em vez de logo o debater, deverá perguntar-se previamente o que é que o interlocutor pensa dos Estados Unidos, dependendo da resposta falarmos de Columbine ou não. Por outro lado,se, para um português, habitualmente céptico, o futuro é mais ou menos igual ao passado, e o mundo é por natureza envelhecido, a experiência americana é bem menos previsível, porque o futuro é moldável, imediatamente plástico, e, se as possibilidades estiverem presentes, é já. Quem admire a democracia americana deverá pensar sempre que um projecto tão extraordinário, «a casa de toda a gente» como lhe chamou António José Saraiva, é falível.
MJS – A escrita do cronista de jornais pode, no teu entender, atingir o «literário», ser literatura?
AF – É evidente que há coisas publicadas como peças jornalísticas que, mais tarde, adquirem importância literária. Nos casos americano e inglês, a chamada crítica literária é profissional, universitária, e tem um circuito que, sendo embora poroso, é mais ou menos de guilda. Depois, ao lado, no jornalismo, há as recensões críticas do movimento editorial corrente. Essas têm outro âmbito, os universitários lêem-nas com maior ou menor atenção, mas raramente as citam ou usam, enquanto os recenseadores críticos saem das universidades e, de algum modo, reproduzem no exterior esse saber adquirido. São campeonatos diferentes, com troféus distintos. Sai gente das universidades, educada num certo tipo de teorização e de investigação, que vai depois escrever guiões para Hollywood. Por isso é que podemos encontrar num filme americano, dos mais banais, em contrabando ou explicitamente, argumentos e diálogos com muito piscar de olho erudito. Em Portugal acontece vermos coligidos em livro, onde ganham uma unidade importante, textos anteriormente publicados em jornais. É o caso do extraordinário livro de M. S. Lourenço, Os Degraus do Parnaso, ou de Miguel Esteves Cardoso, cujas crónicas fazem dele um émulo do romântico alemão Jean-     -Paul Richter, de quem Agustina Bessa-Luis tanto gosta. Podemos perguntar-nos se uma crónica, ou uma série de crónicas sobre gastronomia, é «literário». Mas, se for visto como uma espécie de guarda-rios que separa o candidato a canónico do não canónico, o «literário» é algo de solene e falso. Há um texto inglês do século XVI que diz que o que torna um autor «clássico» é a sua cooptação por um painel virtual de pares. Se outros autores incorporam «aquilo», tácita ou explicitamente, e o tomam como algo de interessante, dá-se então um efeito de tracção que a posteridade acolhe. É como um grupo de marceneiros a olhar para uma cómoda e a reconhecer que está bem feito. É talvez o modo mais certo de descrever isto.
MJS – Quando pegas num livro de um autor desconhecido avalias logo a sua qualidade, ou interesse, pelas primeiras páginas?
AF – O pintor e autor Wyndham Lewis tinha um teste a que chamava «o teste do taxista», que consistia em abrir um livro, ler uma página e logo ver se valia a pena continuar ou não. Todos nós fazemos juízos de valor mais ou menos expeditos sobre aquilo que lemos. Isto prende-se com a questão de saber o que é que torna um objecto, neste caso um texto, interessante ou valioso. Lembro-me de há anos tentar ler Pedro Páramo de Juan Rulfo. Tentei várias vezes e não consegui, para grande frustração minha, porque percebi que tinha algo de muito sério na mão. Uma vez, em conversa com alguém para quem Pedro Páramo é um texto extraordinário, referi-lhe esta minha incapacidade. Disse-me então: «Isso só quer dizer que não és “rulfiano”». Há, de facto, um domínio em que a nossa relação com um texto particular depende de pertencermos, ou não, àquela família. Uma das coisas que para mim é central na leitura, é perceber qual é a cara da pessoa que escreve (num sentido fisionómico peculiar, já que sou um leitor cego, não alucino as cenas que leio num romance). Tento saber o que é que faz aquela cabeça funcionar. Enquanto se mantém insondável, vou ficando pacientemente à espera. Há um momento em que julgo perceber quem é a pessoa do outro lado. Com o cinema passa-se a mesma coisa, não quero ver um filme se não tiver visto o primeiro plano, não por purismo cinéfilo, que não tenho, mas por ser desse plano, ou contra ele, que todos os outros se engendram. Vejo um filme sempre de dois modos – um, banal, que é o de tentar vê-lo do ponto de vista de quem o fez. Às vezes penso que não sei o que caracteriza quem o fez. Aconteceu-me isso, por exemplo, com o primeiro filme que vi de David Lynch (nada sabia sobre ele), Blue Velvet. Pensei: isto é de alguém que foi submetido a uma tortura intensa e brutal nos seus anos de liceu, mas não percebo exactamente de onde vem. Ao ver mais tarde The Night of the Hunter, de Charles Laughton, que nunca tinha visto e há muito queria ver, percebi que era o percursor de Blue Velvet. (O mesmo se dá, por exemplo, com E.T. e O Milagre de Milão de De Sica.) Às vezes basta estabelecer uma relação entre dois objectos para se obter um laço clarificador. Há evidentemente um perigo: quando analisamos um objecto interessante, se pensamos que o trabalho a fazer é reduzi-lo ao que é familiar, estamos a domesticá-lo e, ipso facto, a destruí-lo. Há quem pense que a interpretação consiste nessa tentativa de neutralizar o que há de tóxico no objecto, de trazê-  -lo para casa.
MJS – Relativamente à interpretação, interessa-me o conceito de «apropriação», que acho diferente de, mas talvez vizinho, disso a que chamas «domesticação».
AF – Claro que é outra coisa, nem que seja o facto de associarmos um texto a outro e estarmos a introduzir tudo num conjunto, num contínuo de objectos da mesma natureza, em relação aos quais estabelecemos diferenças ou parentescos. Rich and strange é parte de um verso de Shakespeare, utilizada por alguns para referir objectos (textos, no caso) que não queremos reduzir, deixando-os intactos na sua riqueza e na sua estranheza. O seu interesse é perpétuo, muito justamente porque, às vezes, a sua natureza nos repele. Quando li pela primeira vez Hamlet, pensei que o autor era um quase psicótico. As descrições da sexualidade são autoflagelações de tal modo ásperas, que pensei que só podiam exceder as personagens, emanar do autor, e ter sido escritas por uma cabeça psicótica. Mais tarde preferi descrições da peça em que a ideia de que conteúdos intratáveis excederiam as personagens e contaminariam o autor, era vista como desinteressante. De facto, um texto dessa magnitude é, de algum modo, intratável, e excede sempre o intérprete.
MJS – O verso de Shakespeare remete-nos para a complexidade de alguns textos. Mas, e os textos (ditos) simples? Podem eles também ser «ricos e estranhos»?
AF – Absolutamente. Há pouco falei do Junqueiro, gosto imenso de Os Simples. Há literatura caracterizada por essa «simplicidade», que é da mais alta e, por vezes, mais difícil literatura. Estou a pensar num pequeno poema do romântico inglês, Wordsworth, um epitáfio de duas quadras, em relação ao qual se escreveram já resmas de papel. Parece um poema simples, mas a sua complexidade é imensa. Num outro poema fala de um campo de narcisos a dançarem ao vento, que suscita, de modo simpático, uma dança no seu coração de observador. Hoje, nem em jogos florais, se ainda existem, isto soaria estranho, mas há dois séculos, os contemporâneos de Wordsworth viram na desmesurada repercussão de um acontecimento tão trivial no íntimo do autor, um sinal de demência. O interessante é perceber por que seria uma trivialidade tida por sintomática de demência. Se conseguirmos perceber porquê, estamos a raspar a fuligem que nos torna ininteligível a natureza maior do acontecimento que esses versos marcam. Este tópico é essencial para a compreensão do chamado Romantismo e dos seus autores. Vamos encontrá-lo em Fernando Pessoa, de um modo muito forte – o problema da «consciência de si», o desajuste sistemático entre o que está a sentir e o que está a pensar, etc. João Gaspar Simões, autor de uma importante biografia de Pessoa, não era grande admirador  dos heterónimos e achava que o melhor de Fernando Pessoa estava nos poemas ortónimos, onde o poeta se reencontra com a genuína «tradição lírica portuguesa». Simões julgava também saber exactamente qual o primeiro poema que Pessoa escrevera como Pessoa: «Ela canta, pobre ceifeira…». Ora o curioso é que «Ela canta, pobre ceifeira…», como Jorge de Sena fez notar nos anos 50, é uma versão que Pessoa fez de um poema de Wordsworth, o que perturba fortemente a noção de que é ali que ele reencontra a tradição lírica portuguesa. Se Gaspar Simões estava neste ponto errado, também estava certo, porque aquele poema é realmente decisivo para Pessoa. É em «Ela canta, pobre ceifeira…» que Pessoa condensa o encontro com um certo tipo de dilemas.
MJS – Estando nós a atingir o termo desta conversa, diz-me em síntese, o que é um escritor «maior».
AF – Seguramente aquele que, como Santo Agostinho ou Rousseau, estando a falar do seu tempo, anuncia e introduz, mesmo que de modo difuso, alterações maciças da consciência. Hoje é mais difícil imaginar que isso possa acontecer literariamente, porque o fluxo do que é comunicável, e comunicado numa tagarelice sem fim, é de tal modo volátil e contínuo que ninguém consegue totalizá-lo, até pelo conjunto dos múltiplos e segregados segmentos em que se organiza. Pensar que houve um tempo em que isso foi possível não é deplorar que o mundo tenha tido uma existência orgânica, mas já não tem. Nunca teve.
MJS – Dá-me uma palavra de eleição.
AF – Não tenho uma palavra de eleição, mas pensei, no entanto, numa breve citação que pode talvez substituí-la. Lembro-me de ter entrado numa livraria, quando andava no liceu, e ter comprado um livro A Condenação à Morte (La mise à mort) de alguém que viria a ser um dos meus autores favoritos, Aragon. O livro tinha uma epígrafe, quatro versos de Pasternak que nunca mais esqueci, embora não tenha memória particular para o que leio. Respondo à tua pergunta com esses quatro versos: «Ora ser velho ´Roma/ Que em vez de carros e andas/ Exige não a comédia/ Mas que se cumpra a condenação à morte.»     
     


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